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Atualidades Psicanalíticas #16

O Tabu do Toque

Por Gil Caroz

O obsessivo é culpado. Ele é um “grande criminoso”. Principalmente porque ele goza demais. Essa culpa inevitável, alojada na estrutura, deve ser diferenciada da sentença jurídica de um indivíduo por este ou aquele ato criminoso. Nenhum tribunal pode mexer nessa culpa do obsessivo. Um tribunal do Outro: ele tem um, privado, com quem está em contato direto e permanente. Só que ele não sabe do que é culpado. Ele encontra um pretexto falacioso para sua culpa, o que minimiza sua falta. Assim, o Homem dos Ratos se torna um criminoso por não ter estado ao lado da cama de seu pai no momento de sua morte, tendo ido descansar naquela noite. Freud concorda. Na verdade, Ernst é culpado, mas não pelo que ele pensa que é. Ele é culpado por algo mais sério. Foi porque, desde muito jovem, ele queria a morte do pai1.

Para ilustrar isso, Freud conta um episódio clínico extraído do primeiro caso de um obsessivo que ele teve em análise e que lhe permitiu compreender essa “doença”. Esse homem, um funcionário público escrupuloso, costumava pagar suas sessões com cédulas que previamente passava [ferro] em sua casa porque “era uma questão de consciência para ele não entregar cédulas sujas a ninguém; pois nelas se achavam perigosas bactérias que poderiam ser nocivas à pessoa2.

Esse ritual está em consonância com o “tabu do toque”, de que fala Freud em Inibição, Sintoma e Angústia e que é “um dos comandos mais antigos e fundamentais da neurose obsessiva3. A evitação de contato e contaminação é muitas vezes construída como um sistema complexo de proibição, envolvendo cerimônias precisas que têm a aparência de uma religião pessoal. Ela é contra o investimento do objeto por uma força erótica ou agressiva que impele o sujeito inclinado à união de Eros, bem como pela força dos impulsos destrutivos. Esse entrelaçamento entre Eros e agressividade é a razão pela qual “‘tocar uma mulher’ tornou-se, em alemão, um eufemismo para sua utilização como objeto sexual4.

No entanto, esse paciente tinha menos escrúpulos em relação à sua vida sexual. Com certa facilidade, ele conta a Freud um assédio sexual que pratica regularmente.

Faço o papel de um tio velho e querido em muitas casas de boas famílias, valendo-me disso para de vez em quando chamar uma garota para um passeio no campo. Então arranjo as coisas de modo que perdemos o trem e somos obrigados a passar a noite num albergue. Sempre peço dois quartos, sou bastante cavalheiro; mas quando a garota está na cama vou até lá e a masturbo com os dedos.5

Hoje, tal conduta, se descoberta, levaria nosso oficial ao tribunal. A leveza com a qual ele fala disso, sem dúvida, indica o fato de estarmos em meio à era patriarcal do final do século XIX e início do século XX. Mas para Freud não há leveza aí. Ele qualifica essa prática como um abuso e se surpreende com o contraste entre os escrúpulos da questão relativa às notas e a falta de escrúpulos em relação ao abuso de meninas. Ele explica isso por um deslocamento no remorso que torna o sujeito muito escrupuloso em relação a coisas banais permitindo-lhe, por sua vez, continuar sem constrangimento essa prática que lhe dá satisfação sexual.

Essa compartimentalização que permite ao sujeito manter os escrúpulos separados do abuso é uma das atividades do ego obsessivo que participam da formação de seus sintomas. Trata-se de isolamento. Enquanto na histeria o trauma é tratado com amnésia, na neurose obsessiva “ele não é esquecido, mas, ao contrário, é despojado de seu afeto6. O obsessivo conhece seus traumas na medida em que não os esquece, mas não os conhece na medida em que ele não percebe seu valor7. O acontecimento, e no caso de que estamos falando aqui, o acontecimento de gozo, é relatado com indiferença, como se não fosse importante.

A experiência vivida não está apenas isolada de seu afeto, mas também de suas conexões associativas com outras ideias8. Essa tática do ego permite que o sujeito se concentre em um ponto, sem ser perturbado por outras significações, principalmente sexuais, que poderiam incomodar. Mas isso faz com que seja particularmente difícil para o neurótico obsessivo seguir a regra fundamental da psicanálise, a da associação livre9. Assim, o isolamento responde ao mesmo princípio do tabu do toque da higiene obsessiva, com a diferença de que não é uma evitação de tocar o corpo do outro, mas uma separação de ideias e pensamentos. O obsessivo se assegura de que os pensamentos permaneçam compartimentalizados, que não se toquem uns com os outros.

Aprendamos com a modo pelo qual Freud trata esse relato do sujeito, que não pode deixar de desafiar o analista. Ele poderia ter dito ao paciente para voltar somente quando tivesse interrompido esta prática. Isso dificilmente nos chocaria, porque o analista não pode ser cúmplice silencioso de um gozo canalha. Mas Freud é muito mais sutil. Ele interpreta essa prática do toque usando o adjetivo “sujo” e o verbo “prejudicar” que o sujeito pronunciou em relação às cédulas. Falando sobre os efeitos que esse toque pode ter em uma menina, ele disse a ele: “Mas você não tem medo de fazer-lhe mal, tocando nos genitais dela com a mão suja?” Essa interpretação contraria a separação com o intuito de provocar uma colusão entre ideias que o sujeito deseja deixar totalmente compartimentalizadas. Lá, onde ele separa o abuso e o coloca no refúgio dos escrúpulos, Freud os reúne deslocando os significantes do higienismo relativo às cédulas para os hábitos sexuais do sujeito.

A interpretação é precisa. O paciente fica com raiva, “‘Mal? Como isso pode lhes fazer mal? Nenhuma delas foi prejudicada, todas elas concordaram. Algumas já estão casadas, e isso não as prejudicou.10 Depois dessa sessão, o sujeito não volta mais e Freud não nos diz que se arrepende. Essa interpretação foi uma aposta: ou o sujeito assumia e aceitava por a trabalhar seu modo de gozo (que Freud nos diz ser movido por “fortes determinantes infantis”11), ou a análise para por aí. Foi isso o que aconteceu.

 
Traduzido por José Wilson Ramos Braga Jr.

1 Freud, S., OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA (“O HOMEM DOS RATOS”, 1909), Obras Completas, Vol. 9, Companhia das Letras,  pp. 13-112.
2 Ibid., p 58.
3 Freud, S., INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA (1926), Obras Completas, Vol. 17, Companhia das Letras,  p. 60.
4 Ibid., p 61.
5 Freud, S. (1909), op. cit., p. 59.
6 Freud, S. (1926), op. cit., p. 59.
7 Freud, S. (1909), op. cit., p. 57.
8 Freud, S. (1926), op. cit., p.59.
9 Freud, S. (1926), op. cit., p. 60.
10 Freud, S. (1926), op. cit., p. 59.
11 Ibid.

Publicado primeiramente em francês em 6 de agosto de 2020. Disponível online no link https://www.attentatsexuel.com/le-tabou-du-toucher/   
Texto republicado com permissão do autor. Texto publicado em inglês na Lacanian Review Online em 31/10/2020 no link abaixo https://www.thelacanianreviews.com/the-taboo-on-touching/