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Atualidades Psicanalíticas #33

O que chamamos de “Acontecimento de Corpo”?*

 Por Daniel Roy

Essa expressão “acontecimento de corpo” como definidor do sintoma encontra-se no texto que Lacan forneceu para as Atas do Simpósio Joyce em 1975, sob o título de “Joyce o sintoma”. Aqui está esta passagem: Deixemos o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo, ligado a que: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem. Isso pode até ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo [1] . Por que Lacan nos pede para “deixar o sintoma no que ele é?” Do modo mais simples, isso pode ser interpretado como uma indicação para não separar o sintoma, em seu “ser”, do “ter” do corpo que caracteriza o homem. Isso implica que o corpo, então, não se manteria sem o suporte do sintoma? E deveria o próprio sintoma não mais ser considerado sem a sua “amarração” [son “accroche”] no corpo?

Não podemos encontrar uma primeira resposta a essas perguntas já incluída na própria frase? Na verdade, Lacan indica que “de vez em quando” o sintoma “é cantado” sob o modo fora de sentido do ritornelo infantil. Então, não seria possível ouvir – na grande obsessão do Homem dos ratos, nos sintomas corporais de Dora e nas primeiras histéricas “freudianas”, nas compulsões do Homem dos lobos, na fobia de cavalos do pequeno Hans – uma “musiquinha” que constitui o seu osso? Parece-me que Lacan nos convida aqui a nos libertar, como analistas, do apelo ao sentido exercido pela cadeia significante como tal, para acolher o gozo-do-sentido, o joui-sens do sintoma como o pequeno ritornelo do corpo falante, o ar que temos em nossos ouvidos e que insiste sem razão, mas não sem ressonâncias, o ar que faz nosso aire (nossa base) e nosso erre (nossa errância). A musiquinha que guia nossa existência.

Que corpo?

Se partirmos do corpo conforme Lacan o aborda de forma absolutamente renovada neste texto contemporâneo do Seminário, Livro XXIII, o sintoma [2], nos surpreendemos com a afirmação repetida várias vezes neste texto de que “o homem tem um corpo e tem apenas um”, mas uma repetição que se baseia na extraterritorialidade entre a fala e a escrita, cuja eficácia Lacan demonstra ao utilizar a escrita fonética desta frase (“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan na Kum].”[3]) Na verdade, ao fazer isso, ele realiza uma fragmentação de sentido, que literalmente detona nossa inclinação para entender essa frase e transformá-la em trivialidade. Ao proferir esta frase, Lacan realiza na ação o que diz, ele cria um “acontecimento do corpo”, isto é, um acontecimento de discurso que é, ao mesmo tempo, um acontecimento de gozo, ao fazê-lo “dar o salto do sentido” [le bond du sens] [4] –  que aqui se opõe ao “bom senso” [bon sens] – enquanto utiliza as mesmas palavras. Com isso, ele dá o modelo de interpretação: fazer surgir, com as mesmas velhas palavras, “desarrumando-as” um pouco, seu valor de joui-sens. Ele faz isso porque consegue unir o que produziu ao longo de seu ensino como sense-joui sobre o corpo, ou seja, a construção de três corpos pertencentes a “três ordens”: imaginário, simbólico e real. Uma frase desse texto os reúne para deixar claro que o homem só tem um corpo: o que atesta isso, diz ele, é “o fato de que ele tagarela para se azafamar com a esfera que faz para si um escabelo”[5]. Aqui, é muito importante apreendermos esta insistência de Lacan, pelo seguinte motivo: isso que ele define como sintoma é o que acontece (o acontecimento) a este corpo e UOM tem apenas isso, este um-corpo, não tem outros recursos além daquele para se reconhecer no que está nisso que nele acontece.

À pergunta “O que tens?”, que é utilizada pelo sujeito para “se questionar ficcionalmente”, mas que nos coloca no caminho certo, só há uma resposta: “Eu tenho isso…”. Vamos ilustrar de forma simples: o que tens para chorar, gritar, fazer beicinho, se angustiar…? A isso, o sujeito só pode responder rechaçando um fenômeno do corpo imaginário (anatômico, fisiológico), ou um fenômeno do corpo simbólico (da mentalidade, da psique), ou um fenômeno que se relaciona com o real do corpo (isso que o atravessa, o que ele enfrenta, o que não consegue dizer), isto é, que responde com o saber retirado dos discursos correntes, e se está em análise, ele responde com o inconsciente. Esses vários fenômenos corporais são registrados como “acontecimentos de corpo” apenas na medida em que ocorrem no corpo que temos como um. Tomados de outros discursos que os dominam [les maîtriser], seu valor de acontecimento é obscuro. São acontecimentos, sem Outro, na medida em que se dizem no tratamento, porque é neste dizer que se revela, num relance, o seu valor de gozo. É na medida em que se dizem, que o “índice do corpo”[6] que eles carregam para o sujeito, sem que ele o saiba, é inscrito para aquele que fala e para o analista: sujeitos histéricos que fazem essa apreensão, ela/ele se adaptam ao sintoma do outro, que o percebe em um outro corpo. Mas é isso que constitui seu drama, enquanto buscam se desvencilhar daquilo que, no final de seu ensino, parece a Lacan o único limite com o qual o homem deve lidar, seu corpo, um limite que é também sua única responsabilidade.

Três experiências corporais

1 – “A Esfera” ou os efeitos da linguagem no corpo imaginário

A esfera é a que Lacan reduz o corpo imaginário ao final de seu ensino, esse corpo que, no “Estádio do espelho”, é chamado a se identificar como uma unidade, uma imagem na qual o homem se reconhece [se reconnaît], lá onde ele é visto pelo outro que o acolhe. Mas neste mesmo movimento em que a imagem unifica as peças do corpo pulsional, até então isoladas, esta imagem, o corpo imaginário, lhe subtrai seu ser e entrega-o a todos os domínios do imaginário (rivalidade, ciúme, competição). Assim, quando o corpo se constitui como imagem, deixa de existir como corpo vivo, é o que diz o estádio do espelho, e a marca do vivo se inscreve nesse corpo como uma falta, designada por Lacan como falo imaginário. Os efeitos subjetivos da linguagem na consistência imaginária do corpo são duplos: de um lado narcisismo, um termo freudiano, pelo que Lacan o substituirá por “adoração”, e por outro lado, todos os termos que, numa linguagem, designam o que falta a uma imagem para ser completa: “um defeito”, “um dano”, mas isso pode ir tão longe quanto o furo nesta consistência, pegando emprestados os furos anatômicos. Portanto, dois efeitos da língua no corpo imaginário: 1) adoração do corpo; 2) a falta em todas as suas formas imaginárias.

O que falta não é inscrito apenas como um “menos” [en moins], mas ocasionalmente como um “demais” [en trop]. Portanto, podemos adicionar um terceiro efeito: 3) o que constitui uma mancha [tache], uma mancha física ou uma mancha moral.

2 – Os efeitos da linguagem no corpo conferido pelo simbólico

É fundamentalmente um corpo mortificado pela linguagem, onde o sujeito é representado por um significante para outro significante; é o corpo da antiga sepultura, rodeado de vários bens de uso e troca, mesmo outros corpos sobre os quais a pessoa enterrada tinha direito ao gozo. Notemos aqui que estes objetos de gozo não estabelecem, de forma alguma, o gozo como absoluto, mas ao contrário como restrito, limitado: “aqui está o que é a amplitude possível de prazeres para um homem, mesmo que ele seja o mais poderoso entre homens!”  Nesta perspectiva, a do corpo conferido pela linguagem, a marca do vivo é uma marca de divisão que atinge o sujeito, durante toda sua vida e mesmo após de sua morte – uma divisão entre o possível do seu desejo e os seus prazeres, por um lado, e por outro um real impossível de localizar. ” O corpo, a levá-lo a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequencia de signifi­cantes.”[7]. Essa marca, o falo simbólico, designa o efeito no corpo dessa incorporação do corpo do simbólico. É tanto uma negativação quanto uma localização do gozo, tanto um “não” [non] ao gozo – efeito da castração – e um “nome” [nom] – o traço unário. Mas há algo no corpo vivo que não se deixa ser negado, algo que não se deixa capturar por um “dizer que não” e que, portanto, em troca, cria um furo no simbólico, um furo no saber, “um furo que não há como saber”[8], o sexual.

Dois efeitos da linguagem no corpo desta mortificação simbólica: 1) A marca, o brasão, a queimadura com ferro quente, que pode fazer uma nomeação ; 2) Um efeito de furo, subjetivamente inscrito como um enigma, fundamentalmente um enigma do sexual.

Mas J.-A. Miller nos ensinou a reconhecer o efeito de impacto, no corpo vivo, do próprio significante, que se isola em um regime de fala que privilegia o não-sentido [non-sens], nada de sentido [riens de sens], nos sonhos, lapsos, equívocos significantes, isto é, todos os tropeços [chutes] do discurso. É aí “onde o sujeito pode perceber que esse inconsciente é seu”, caso contrário, pode sempre pensar que vem do Outro, que é a condição comum de quem vem ao psicanalista. É este saber, este inconsciente –  que não é nem das leis da aliança e da filiação, nem dos significantes mestres – “que afeta o corpo do ser que só́ se torna ser pelas palavras, isso por fragmentar seu gozo, por recortar este corpo através delas até produzir as aparas com que faço o (a), a ser lido objeto pequeno a […] ou ain­da, a (a)causa primária de seu desejo.”[9]. São os efeitos corporais do significante, não mais a mortificação, mas os efeitos do gozo, um movimento de “corporificação” [10]  da linguagem na medida em que afeta o corpo vivo. Há, portanto, um terceiro efeito corporal da linguagem: 3) o afeto, essencial para a compreensão da clínica atual.

É nesse momento de mudança de seu ensino que Lacan condensará esses três efeitos corporais da linguagem em sua dimensão simbólica pelo verbo “tagarelar” [jaspiner] que designa na língua francesa tagarelar ou tagarelice. Este é o puro gozo da linguagem na sua materialidade, no seu “latido”, porque “jaspiner” é derivado da palavra “japper” [latir] que designa o latido do cão!

Não se deixando identificar com as marcas do significante à medida que ele circula nessa “tagarelice”, não se deixando aprisionar em sua dimensão de semblante, deixa o sujeito entregue aos objetos pulsionais que se instalaram: aqui está ele no centro das atenções, ou da gozação pelas costas, ele será devorado ou rejeitado como dejeto. Não tendo mais meios de cruzar a soleira da faculdade ou do colégio, esse corpo não pode mais se alojar neste espaço tecido de marcas significantes e é ejetado desse lugar.

3 – Devemos falar aqui desses fios de gozos, desses pedaços de real, desses fragmentos do corpo que são objetos (a). Eles são, na verdade, o produto dessa “tagarelar[ice]”… muito ocupado com a esfera” que constitui a experiência de uma análise. Retirados do gozo do corpo no encontro com a demanda do Outro da linguagem, decorrente portanto dos objetos pulsionais, eles localizam e difratam esse gozo nessas extensões que são os objetos que causam o desejo, como preciosos objetos escondidos no seio da fantasia do analisando, mas também como objetos mais-de-gozar que aumentam o prazer do corpo que se tem [que l’on a]. Esses objetos então designam “o real do corpo” à medida que se infiltra na esfera imaginária e na tagarelice significante. Os efeitos desses objetos “reais” sobre o corpo se acumulam 1) como “o que é impossível de suportar”, como “no que se esbarra”, “o que não pode ser dito”; 2) como o que cai, o que é rejeitado ou o que emerge do furo, o que retorna; 3) mas também na criptografia da linguagem pelos meios pulsionais do corpo [moyens pulsionnels], criptografia oral, anal, escópica, invocante da linguagem, tal como a escutamos na criancinha.

Fazendo um escabelo

O corpo foi primeiramente abordado por Lacan como fragmentado e unificado como um corpo imaginário, depois se apresenta como um corpo simbólico concedido pela linguagem, que distribui gozos e os torna suporte de marcas, condensadores de gozo, para finalmente produzido como o real de um corpo fragmentado pelo golpe “estúpido” da linguagem. Isso é o que faz Lacan dizer que é a linguagem que traumatiza o corpo, na medida em que lhe impõe esse trabalho de criptografia, que acabará por constituir o gozo fálico, que designa ao final do ensino de Lacan também o gozo da fala, o gozo sublimatório e o mais-de-gozar[11]. Este gozo, que aparece fora do corpo [hors-corps] no sentido de “lado de fora” da “esfera” do corpo imaginário, constitui, todavia, o corpo do ser falante enquanto constituído por uma substância gozante [substance jouissante].

Este corpo “que o homem tem” é, portanto, fundamentalmente um corpo que “se goza”, que se goza por todos esses meios que são a fala, os objetos mais-de-gozar, a sublimação. Lacan dará um nome a este corpo feito de substância gozante, um corpo que não opera nem na substância extensa nem na substância pensante, um corpo que ex-siste no espaço físico e no espaço mental. Um corpo que não se sustenta por um “je suis”  o, um “Eu sou…”, por um “Eu penso”, mas por um “se jouit”, um “se goza”. O nome dado por Lacan a este um-corpo é de escabelo, um corpo graças ao qual todos se consideram belos, que serve de pedestal para todos, isto é, também de ocasião de quedas. Assim, o escabelo é a própria condição do ser que fala, o homem (UOM) que não tem outro ser senão o corpo que tem como um corpo [un corps], o “um” designa aqui o Um do gozo, que segura esse escabelo.

Este equilíbrio é ao mesmo tempo robusto e frágil, como indica esta frase que aqui serve de bússola: “ele tagarela para se azafamar com a esfera que faz para si um escabelo”.

É robusto e é prontamente inscrito como “traços de caráter”, como “a personalidade”, ou seja, hábitos, modalidades de gozo.

É frágil porque este escabelo repousa sobre um nó que, para um sujeito, se deu ao acaso, de forma contingente, entre uma colcha de retalhos de imagens, retalhos de discurso e fios de gozo.

É um nó sintomático que contém no seio a própria contingência da presença do sujeito no mundo, contingência que assumiu o valor absoluto do gozo (o melancólico se confronta sem mediação com esta marca que faz furo) e à qual se articula o desejo inconsciente. É isso que o histérico decifra sobre o corpo de outrem. Ela lê no sintoma que afeta o outro corpo o índice do valor do gozo veiculado pelo desejo como falta. Ela o lê igualmente bem no Outro, no discurso do mestre, cuja verdade como sujeito dividido ela revela.

Então o sintoma é o acontecimento que vem afetar aquele corpo, que vem afetar o escabelo e vem mostrar sua trama, sua lógica. É nesse sentido que Lacan fala de Joyce dizendo que ele “é sintomato-logia” [symptomato-logie]; de fato, na sua escrita e na sua vida, ele atualiza a lógica do sintoma, “contornando a sua reserva” de escabelo, ao mesmo tempo que o torna um pedestal.

Esse sintoma é o fundamento de uma nova clínica, que é a dos efeitos corporais da linguagem – efeitos produzidos na consistência imaginária do corpo, em sua trama simbólica, em suas epifanias reais. Esses sintomas, que chamamos de novos, devem ser construídos no tratamento como um acontecimento de corpo de gozo, que são os únicos acontecimentos verdadeiros da vida, na vida de um homem.

A psicanálise pode ser então definida como o dispositivo que permite que você perceba do que o determina 1) algo “que acontece com você” como se você o tivesse escolhido, 2) para fazer disso que lhe acontece com você um sintoma 3) como um acontecimento de corpo, quando um ato de dizer que  morde um modo de gozo [unjouir] acontece na sessão analítica. É um acontecimento, portanto, contingente, na medida em que cria um nó entre um dizer e um modo de gozo “a fim de se fazer um escabelo”: é assim que Lacan termina sua frase. Fazer -se um escabelo do corpo de gozo na sua consistência imaginária, no seu furo simbólico e no seu mais-de-gozar, é dar-se a possibilidade da “escabelestração”, uma castração do escabelo, de usá-lo da maneira certa, para aprender a se servir da consistência imaginária, do furo do simbólico e de seus mais-de-gozar.

Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr.
Revisão: Leny M. Mrech
  • Este texto é um dos textos de Orientação para o Congresso da NLS: Efeitos Corporais da Linguagem, que aconteceu de 22 a 23 de maio de 2021. Para obter mais informações, acesse o Blog do Congresso.

Referências
[1] Lacan J., Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 565.
[2] Lacan J., O Seminário, livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
[3] Lacan J., Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 561.
[4] Ibid., p. 562.
[5] Ibid., p. 561.
[6] Lacan, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 372.
[7] Lacan J. “Radiofonia”, Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 407.
[8] Lacan J., Le Séminaire Livre XXI, RSI, aula de 8 de abril de 1975, Ornicar n ° 5, dez-jan 75/76, p.39.
[9] Lacan J., “… ou pior, RELATÓRIO DO SEMINÁRIO DE 1971-72”, Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 548.
[10] MILLER, JA. (2000[2004]) “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo” São Paulo, Opção Lacaniana n 41, pp. 7-67.
[11] Miller J.-A., “Os seis paradigmas de gozo”, Opção Lacaniana online nova série Ano 3 • Número 7 • março 2012. Disponível em http://opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero7/texto1.html

Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 15/05/2021 no endereço eletrônico
https://www.thelacanianreviews.com/what-do-we-call-body-event1/