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CORPOS DOENTES PELA VERDADE

José Wilson Ramos Braga Júnior (CLIPP)

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No início do século XX, Freud inventa a psicanálise partindo de seu interesse pelos mistérios subjacentes dos sintomas corporais de pacientes histéricas, sintomas cuja etiologia o saber médico de sua época fracassava em elucidar. Freud acreditava que poderia encontrar uma causa factual que seria o motivo das manifestações conversivas dessas pacientes. A psicanálise seria o método “através do qual, num outro registro que não o orgânico – o registro da palavra e do sentido – tais sintomas encontrariam traduçãoi, tradução de algo da verdade daquele sujeito que os apresenta. Para Freud, a verdade do sujeito não está no discurso linear de seus pacientes mas naquilo que aparece e corta o sentido, como nos sonhos, lapsos, chistes, atos falhos, ou seja, nas formações do inconsciente.

Após a morte de Freud, a dimensão da fala deu lugar a uma perspectiva biológica de maturação do desenvolvimento psíquico, deixando a psicanálise mais próxima da neurobiologia e do instintivo. São esses princípios, enaltecidos pela ego psychology, que Lacan critica fortemente no início de seu ensino, trazendo de volta a importância da fala e da linguagem ao método analítico. Pela fala, o sujeito verbaliza sua história, que não se iguala à realidade factual do seu passado, mas ao que da sua história ele traz no discurso – o modo como o sujeito, em seu relato, articula esses fatos históricos. Lacan ressalta que “o inconsciente é esse capítulo da minha história marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser reencontrada […] escrita em algum lugar”. E um desses lugares destacados por ele é “meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose onde o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode, sem perda grave, ser destruída. […]”.ii Desde então, a verdade começa a falar tanto na fala quanto no corpo, mas o sujeito não a reconhece e é por isso que ela precisa ser interpretada ao aparecer como um lampejo na experiência analítica.

Miller aponta em seu texto “Elementos da Biologia Lacaniana” (2001)iii que, até Freud, a palavra era discreta e falava baixinho, mas com ele, a verdade ganhou segurança e começou a ser ouvida. Já a partir de Lacan, a verdade se pôs a vociferar: “Eu, a verdade, falo” […] vagabundeio pelo que considerais o menor verdadeiro em essência: pelo sonho, pelo desaforo de sentido da piadinha mais gorgória e pelo nonsense do mais grotesco trocadilho”.iv Mas ela também diz: “sou para vós, portanto, o enigma daquela que se esquiva tão logo aparece”.v

Contudo, no decorrer de seu ensino, Lacan reconhece que a verdade não poderia falar tão alto assim, mas apenas se dizer pela metade, ser meio-dizer ou ainda que, ao falar, tampouco dizia a verdade – seria tão variável, tão pouco confiável quanto a mentira. Entregue aos efeitos do significante, seguindo ora um ora outro, mudando constantemente seu valor – revelou-se, enfim, como um semblante. O declínio da verdade se deu quando Lacan decidiu passá-la para a escrita, escrita lógica onde ela não passa de sua letra inicial (V) e torna-se escrava de um saber elaborado com o objetivo de delimitar um real. “O real está pouco ligando para a verdade” que a seus olhos é apenas um semblante. A certeza – a verdade que não muda – é o correlato do real e só chegamos a ela pelo significante, pelo saber. Portanto, há uma disjunção entre o saber e a verdade.

Os corpos (organismos vivos) já nascem programados com um saber que não precisam de aprendizado – são corpos que sabem o que fazer para manter sua sobrevivência. O animal sabe aquilo que tem que fazer e não se desvia desse propósito. Exceção são os corpos da espécie humana pois são habitados pela linguagem. “[…] eles são a vergonha da criação. São corpos vivos que são, ao mesmo tempo, doentes pela verdade. De fato, a verdade confunde, ela embaralha a relação do corpo com o mundo e com o real”. Miller ressalta que o homem mantém uma relação com o real através de outro saber, não aquele do seu corpo, mas o saber da ciência. Só assim ele não se deixa envolver pela verdade e pelo seu corpo doente pela verdade que é quando o corpo deixa de obedecer ao saber que está nele – eis o corpo histérico.

Segundo Miller, o corpo histérico é aquele que recusa a ditadura do significante mestre: complacência somática, em Freud; recusa do corpo, em Lacan. “A recusa do corpo quer dizer […] que o corpo se recusa a obedecer ao saber do corpo, […] a servir à finalidade da vida. Em segundo lugar, […] que o sujeito recusa o corpo do Outro, especialmente do outro sexo, o que torna a relação sexual problemática, difícil, entravada. O corpo recusa o corpo em seu próprio corpo”. O caso clínico de Freud que exemplifica bem essa recusa do corpo é aquele da cegueira histérica, uma cegueira sem substrato orgânico, interpretável do ponto de vista analítico, um fenômeno de verdade. Na teoria das pulsões, Freud põe em oposição as pulsões do eu – pulsões relacionadas à sobrevivência do corpo e autoconservação do indivíduo, ou seja, relacionadas ao saber do corpo, e as pulsões sexuais. O organismo vivo deve obedecer a esse saber que rege o corpo – por exemplo, o olho serve para ver. Na cegueira histérica, o corpo deixa de servir à sua finalidade natural devido a uma perturbação que se instaurou – em consequência do recalque contra a pulsão sexual parcial relativa àquele órgão. São duas dimensões dessa pulsão: o fenômeno de verdade – devido ao recalque, a função do órgão é subtraída, sem correlação orgânica, é interpretável, e podemos encontrar um sentido e um efeito de verdade que pode fazer com que ele desapareça; e o fenômeno de gozo – o órgão torna-se o suporte de um gozar, como se esse gozar fosse uma infração. Sendo o olho a sede de um gozo do olhar, anula-se sua função natural – o prazer se transforma em gozo a partir do momento em que transborda o saber do corpo e deixa de obedecer-lhe. Portanto, a verdade e o gozo têm algo em comum: trabalham contra o saber do corpo – é nesse sentido que Lacan afirma que “a verdade é irmã do gozo”.vi

i Zucchi, M. (2014) Esse estranho que nos habita: o corpo nas neuroses clássicas e atuais. In: Opção Lacaniana online, ano 5, n 14.

ii Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 260-261

iii Miller, JA. “Elementos de biologia lacaniana”, Escola Brasileira de Psicanálise – MG, 1999. Reúne as três conferências feitas por Jacques-Alain Miller por ocasião do IX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: As palavras e os corpos, realizado em Belo Horizonte nos dias 22, 23 e 24 de abril de 1999.

iv Lacan, J. (1956) A Coisa Freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 411

v Ibid, p. 410

vi Lacan, J. (1969-1970) O seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 51.