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Destinos da anatomia *

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Alfredo Zenoni

O célebre enunciado freudiano “a anatomia é o destino”1 é tomado ao pé da letra apenas pelos neurocientistas que supõem a existência de um “modelo animal” do comportamento.

Um professor de fisiologia da universidade de Oxford, por exemplo, que estuda o comportamento sexual da mosca drosófila, para isolar desta os fundamentos neuronais, pode postular como quadro geral de sua pesquisa que “os machos, não importa de qual espécie animal, cortejam as fêmeas”2, sem nenhuma exceção; o comportamento sexual dos seres humanos, por exemplo, não abala esta convicção.

Em outro lugar, é à bioquímica do corpo que confiamos a tarefa de nos fornecer as leis que governariam o acasalamento macho-fêmea na espécie humana. Não há uma só revista que não tenha consagrado um artigosobre os feromônios masculinos enquanto responsáveis pela atração exercida pelos homens sobre as fêmeas, mesmo que isso signifique circundar esta hipótese com alguns condicionais.

Ao contrário, o enunciado freudiano é rejeitado por todas as correntes de pensamento que criticam o chamado naturalismo e, ao mesmo tempo, o chamado “patriarcalismo” heterossexual da psicanálise. No entanto, este enunciado não pode ser lido fora do contexto de outros enunciados de Freud sobre a matéria.

A abolição da biologia como fator causal, determinante da conduta sexual no ser humano e o fato de que não se possa deduzir da natureza anatômica, cromossômica, do sexo de um indivíduo, o que são suas inclinações em matéria de sexualidade, é afirmado, ou claramente implícito, em várias passagens da obra de Freud.

Ele sublinha, por exemplo, que “as diferenças biológicas do sexo não correspondem a nenhuma característica psíquica particular”3. Em outras palavras, não prescrevem nenhum comportamento. Mais tarde, na conferência sobre “A feminilidade”, aponta que “aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.”, e que: “Os senhores não podem conferir aos conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’ nenhuma conotação nova. A distinção não é uma distinção psicológica”4.

É como se Freud estivesse discutindo que é especialmente no registro da sexualidade, que a ausência de um regime determinista do comportamento é mais obviamente sentido. Em suma, isso que o indivíduo fará de sua anatomia, a significação que ele lhe dará e que lhe será dada no decorrer de sua vida, faz o destino dessa mesma anatomia.

No entanto, ela não se evapora pura e simplesmente: é num outro nível, que não o biológico, que há uma incidência sobre a sexuação.

Lacan o diz bem: “Freud nos diz – a anatomia, é o destino. Vocês sabem que, em certos momentos, ergui-me contra essa fórmula pelo que ela pode ter de incompleta. Ela se torna verdadeira se atribuímos ao termo anatomia seu sentido estrito e, digamos, etimológico, que valoriza a ana-tomia, a função de corte”5, entendido como corte significante. A fórmula de Freud então não é falsa, mas incompleta, falta inserir “a sexualidade […] para as redes da constituição subjetiva, para as redes do significante”6.

A “exclusão do órgão especificamente macho”

A passagem por essas redes afasta o ser falante de toda a determinação biológica do comportamento, mas não o afasta de seu corpo. O ser falante não é um sujeito transcendental, a priori, pairando sobre uma gama de sexualidades entre as quais teria apenas que escolher, mas um ser que tem um corpo, um corpo sexuado, “macho”, por exemplo, exceto que ele não sabe o que fazer com ele7. Em outras palavras, se o dado anatômico é isso que ele é 8, para o que é de seu uso, o falasser não é equipado com um manual de instruções correspondente: nada representa “no sujeito, o modo em seu ser de quem é macho ou fêmea”9, nada no inconsciente corresponde a uma bipolaridade do sexo10 e ainda menos, se podemos dizer, a qualquer fórmula da relação entre os dois sexos.

No lugar de um binarismo natural condicionando o comportamento sexual do indivíduo11, trata-se de uma oposição no nível de uma parte da anatomia aparente, perceptiva, aquela do órgão peniano, que passa a representar um papel na caracterização falada do indivíduo, como homem ou mulher12.

Isso que escapa aos teóricos do gênero e a alguns outros é que, se efetivamente a anatomia nãodesempenha qualquer papel na determinação do comportamento, ela desempenha um, no regime real, simbólico e imaginário (RSI), que caracteriza a condição humana, em relação à nomeação.

O dado anatômico aparente do órgão peniano – não modificável pela psicanálise, da mesma forma que os outros dados anatômicos 13 – é apreendido em um dizer, num processo de significantização, e torna-se o critério de uma alternativa falada (“nós os distinguimos, não são eles que se distinguem”14, destaca Lacan) que introduz outra forma de diferença, no lugar da diferença biológica natural. Se produz uma inversão da “diferença dos sexos naturais, na sexualização da diferença orgânica” que implica “o denominador comum de exclusão do órgão especificamente macho”15

Uma parte da anatomia vem à tona, é valorizada em relação a sua privação. O “não-pênis” da mãe ou da mulher (que se concebe apenas no universo simbólico) transforma o dado anatômico em um significante, o phallus 16, “que consiste tanto [no ser humano] no que há de fêmea quanto naquilo que se diz do macho; um phallus – como eu ilustrei pela breve visão anterior – valendo por sua ausência”17.

O phallus, tornando-se mais tarde função fálica, vai constituir assim o critério de semblante, “o ponto de mito”18 na base de uma repartição – que não é prescrita pelos cromossomos, mas deve-se ao discurso – entre um lado homem e um lado mulher dos seres falantes.

Essa repartição é, num primeiro tempo, formulada em termos de ser ou ter19 o phallus, tornando insustentável toda referência a um modelo etológico, a uma forma qualquer de bipolaridade sexual e projetando o comportamento de cada um dos sexos num registro da comédia20.

Num segundo tempo, o phallus torna-se função fálica. Esta repartição se transformará, através de um tratamento mais lógico, em uma diferença de modos de gozo: um gozo fálico para todos (homens e mulheres indistintamente) e um outro “suplementar”21, feminino – porque foi antes percebido nas mulheres – para não todas. De um lado, um regime do universal e do localizado; de outro, um regime do singular e do não localizado, relativo ao gozo. Acontece, às vezes, que possa haver “mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” como enuncia22 Lacan.

Sexualidades múltiplas

“A palavra funciona em um nível cuja preeminência o discurso psicanalítico descobriu, especificando o ser falante em tudo o que é da ordem do sexo, ou seja, do semblante.”23 Por que ela abole toda pulsão genital natural24, a intervenção do significante phallus (falo) é justamente aquilo que não permite a formulação de uma relação sexual entre os dois lados da sexuação, ao contrário.

O phallus é a causa e a máscara, ao mesmo tempo, da auência da relação sexual25, o que causa a não-relação sexual e ao mesmo tempo aquilo que a vela. Ele perturbao funcionamento “natural” da sexualidade, fazendo-se passar ao mesmo tempo por seu funcionamento normal.

Se o phallus constitui o critério de repartição das “identificações sexuadas”26, ele é também aquilo que limita o gozo, na relação de casal, ao gozo do corpo próprio. Ele constitui o obstáculo para que o gozo seja relacional: “passado ao significante”, o falo “escava o lugar a partir do qual adquire efeito para o falante […] a inexistência da relação sexual”27.

Então, o impasse não se supera por uma fórmula ideal da relação sexual, que é impossível de se escrever, mas por um certo tornar-se sintoma do parceiro, quem quer que ele seja, quer dizer, por seu tornar-se meio de gozo, para além do falo.

Ali onde a relação não pode se escrever em uma fórmula universal, ela pode ser suplementada por um certo saber fazer aí singular, com o corpo do outro. Disto, o falasser pode “se fazer uma conduta”28. Um gozo “suplementar” em relação ao gozo fálico e sem representação no inconsciente, um gozo que se experimentasem que possamos dizer outra coisa; faz então função de relação.

É a abolição de início, não do dado anatômico, mais de uma essência natural dos sexos, de um princípio masculino e de um princípio feminino (Yin e Yang) e, desta forma mesma, de uma relação entre os dois, que dá lugar a uma multiplicidade de condutas na sexualidade dos seres falantes. Exceto que esta multiplicidade não depende de uma condição primordial “polimórfica” do gozo, antecedendo de algum modo (a qualquer maneira) ao binarismo sexual, mas é justamente a consequência da inexistência deste binarismo mesmo. “A sexualidade está sem dúvida no centro disso que se passa no inconsciente”. Mas ela está no centro disso na medida em que é uma falta”29. A dita polimorfia vem no lugar de um furo. Homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade, “terceiro gênero”, assexualidade, “parafilias” diversas (qualquer que seja a maneira que se as nomear), constituem tantas (algumas das) “condutas”, cada uma com seus impasses próprios, que suplementam a abolição da bipolaridade natural dos sexos que caracteriza a espécie dos falantes.

Por causa do phallus, em suma, a relação sexual é substituída pela fórmula de um laço sexual feito de arranjos, de bricolagens, de gostos pessoais, que suplementam a fórmula impossível. O “natural” da relação sexual ao não existir na espécie falante, é substituída – de modo diferente, conforme ela inclua ou não a significação do phallus – por diversas formas “culturais” de relação a um parceiro, contanto que ele encarne um modo de gozar nas mesmas condições que um sintoma. É por isso que a relação entre parceiros é em todo o caso “Intersinthomática”30.

Uma questão de escolha

A abolição de todo determinismo biológico tem como consequência, desde então, que ser homem e ser mulher, ou não ser nem um e nem outro, adquire de algum modo um caráter facultativo. É o resultado de uma escolha. Uma escolha forçada,31 porque se trata de escolher o que se diz ser. Mas essa escolha forçada, atemporal, insondável, é uma verdadeira escolha, como o prova o fato de que podemos recusar ou rejeitar o significante phallus32 , interpretá-lo a seu modo, ou simplesmente não estar totalmente seguro sobre seu sexo. É nesse sentido que Lacan pôde dizer que “o ser sexuado só se autoriza de si mesmo”33 e de alguns outros. E que “só há responsabilidade sexual 34: na falta de um programa específico para a sexualidade, é preciso responder por ela, exceto que a resposta só pode ser sintomática35.

É por isso que, mais do que de sexo, trata-se, no falasser, de sexuação, quer dizer, de um devir, de alguma coisa que é tributária dos encontros e dos acasos de uma historia. Disso resulta um destino, caso se queira. Ser homem ou ser mulher, ou não ser nem homem e nem mulher, não é um ponto de partida, mas um processo de subjetivação.

Uma das consequência disso, aliás, é a incidência sobre a sexuação dos falasseres, dos primeiros parceiros encontrados no espaço familiar, aqueles mesmos que são interditos, mas investidos de maneira primordial. A ausência de binarismo sexual inato dirá também que o objeto, na “escolha de objeto”, consiste igualmente no fato de que ele se substitui, conforme diferentes configurações, por um primeiro objeto, insubstituível e interditado, ao mesmo tempo. E que o incesto, então, contamina sempre, mais ou menos, as relações ou as ligações sexuais quaisquer que sejam elas, entre os seres falantes.

 

* LQ 906

1 Freud, S. “A Dissolução do Complexo de Édipo” (1924). Ed. Standard – Vol, 19. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1969, p. 222.

2 Miesenböck G., “de la lumière dans le cerveau », Pour la science, nº 376, p. 39.

3 Freud S., “L’intérêt de la psychanalyse », Résultats, problèmes, Paris, PUF, 1984, p. 205

4 Freud, S. “Feminilidade” (1932-1936) . In: Vol. XXII – Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos – Conf XXXIII p. 76. Edição Standard, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1969.

5 Lacan, J. O seminário, Livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Zahar,2005, p. 259

6 Lacan, J. O seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1998, p. 167.

7 Lacan J. O seminário, Livro 20, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,1985, p. 98

8 Ibid.

9 Lacan, J. Escritos – Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1998, p. 849

10 Lacan, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pg.62 & Lacan, J. O seminário, Livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.38: “o homem e a mulher, não sabemos do que se trata”

11 Só a Igreja Católica conta com a constituição biológica diferente dos organismos masculino e feminino para deduzir um papel, missão e características psíquicas diferentes (cf. Cardeal J. Ratzinger, “Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração de homens e mulheres em Igreja e no mundo ”- disponível no site da Cidade do Vaticano).

12 Não nos baseamos na estrutura cromossômica da criança para dizer que é menina ou menino.

13 Miller J.-A. “De la naturaleza de los semblantes”, 17 de juniode 1992. Buenos Aires: Paidós, 2018 & “La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, 25 de noviembre de 1998. Buenos Aires: Paidós, 2011 “Lo real es la joroba que el rey Ricardo (de Shakespeare) tiene sobre su espalda, que él no eligió, … y que hace de este rasgo uma particularidad que dicho rey convierte em el motivo de su reivindicación (seu destino)” p. 24.

14 Lacan, J. O seminário, Livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.16

15 Lacan, J. O seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1992. Pg. 74

16 Ibid.

17 Lacan, J. Le seminaire, livre XXII, “RSI”, leçon du 11 mars 1975, Ornicar? Nº 5 p. 17

18 Ibid.

19 Lacan, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pg.63

20 Lacan, J. “A significação do falo”, In: Escritos, op. cit., p. 701.

21 Lacan J. O seminário, Livro 20, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,1985, p. 99.

22 Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Pg. 112

23 Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 58.

24 Lacan, J. Idem, Ibidem.

25 LACAN, J. Os não-tolos erram / Os nomes do pai. Seminário 1973-1974 [recurso eletrônico] / Jacques L. [tradução e organização de Frederico Denez e Gustavo Capobianco Volaco] Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018. Lição de 12 de fevereiro de 1974, p. 135.

26 Ibid., lição de 9 de abril de 1974.

27 Lacan, J. “O aturdito”, In: Outros Escritos – Rio de Janeiro: Zahar, 2003. P. 456

28 Laurent, E, “L’unarisme lacanien et le multiple des conducts sexual”, Lacan Quotidien, n ° 865, 31 de janeiro de 2020, citando Lacan J., “O aturdito”, op. cit., p. 489.

29 Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 58.

30 Lacan, J. Conclusions du IXe congrès de L’Ecole freudienne de Paris. La Cause du désirn nº 103, 2019, p. 23.

31 Comentário do autor : Assim como a escolha : a bolsa ou a vida. Mas sempre se pode escolher a bolsa.

32 Idem. Ibidem .

33 Lacan J. Le Séminaire, livre XXI – Les non-dupes errant. Op. cit., lição de 2 abril de 1974.

34 Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. Pg. 112.

35 Miller, J-A. Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.50.