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O fazer existir da mulher que não existe na experiência psicótica do presidente Schreber

Antônio Teixeira EBP/AMP

Gostaria de agradecer a Bernadete Piteri, que muito me honra com o convite para abertura desse curso, assim como a Emanuelle Garmes, que se ofereceu para comentar minha intervenção, a Sandra Grostein, pela coordenação dessa mesa, assim como a equipe responsável pela organização desse curso, particularmente a Cláudio Ivan, pela divulgação. Esse convite me conduziu a renovar meu interesse pelo estudo psicanalítico do caso Schreber, que traz consigo, como vocês bem sabem, em razão, uma riqueza incalculável de detalhes que permite que ele seja abordado a partir de uma infinidade de ângulos distintos. Ele pode ser pensado, por exemplo, a partir do que significa para a psicanálise o estudo clínico de um testemunho escrito, considerando que a Schreber não foi dada a oportunidade de se fazer escutar, o que nos leva inclusive a nos perguntar sobre o destino que poderia ter sua psicose caso ele houvesse encontrado um psicanalista. Poderíamos igualmente examinar seu relato autobiográfico a partir de sua leitura inaugural por Freud, para quem a paranoia se manifesta como condição resultante de um conflito homossexual relativo a um estágio de regressão narcísica, como também considerar os estudos de Ida Macalpine, que vincula os transtornos de influência relatados por Schreber aos efeitos produzidos pelas técnicas ortopédico-educativas às quais seu pai o submetia. Caberia além disso comentar, se quisermos ser exaustivos, a leitura proposta por Melanie Klein, que que desloca a questão da origem de sua psicose para a vertente de uma relação supostamente arcaica e esquizoide com a mãe. E não nos parece, finalmente, improvável que um psiquiatra orientado pelo DSM V diagnosticasse o caso como uma síndrome de burnout, ao tomar como causa de sua doença a sobrecarga de trabalho a que foi submetido ao assumir a função de presidente do tribunal de apelação de Dresden.

Encontramos, como vocês percebem, uma floresta ilimitada de teorias que ora se ajuntam, ora se dispersam, num transbordamento especulativo que por vezes parece rivalizar, em sua deriva imaginária, com o próprio delírio do presidente Schreber.  Se elegemos, portanto, Lacan, para orientar nossa leitura, não é simplesmente pelo fato contingente de sermos aqui lacanianos. Meu propósito é o de demonstrar a vocês por que razão a referência a Lacan não é fruto de uma escolha casual, mas antes responde à necessidade de uma orientação epistêmica sem a qual ficamos desbussolados no meio dessa selva especulativa. Para sairmos dessa floresta, necessitamos antes de tudo de desbastá-la, no sentido de constituir, a partir de Lacan, o método que Jacques-Alain Miller designa, em “O osso de uma análise”, como operação de redução. Esse método consiste em localizar, como veremos, o fator invariante que se repete em meio à multiplicidade dos fenômenos de dissolução imaginária do qual o presidente Schreber nos oferece um doloroso testemunho. É com esse intuito, portanto, que eu gostaria de convidar vocês a pensar de que maneira a fórmula proposta em nosso título, o fazer ex-sistir d’A mulher que não existe, serve a situar a função invariante que nos guia na estrutura.

Essa fórmula me interessa particularmente, na medida em que ela parece trazer consigo uma contradição semântica: o fazer existir, na experiencia psicótica, algo que por definição não admite a existência. Tentarei, portanto, interpelar inicialmente essa fórmula como uma questão que poderia ser enunciada assim: o que significa, para Lacan, a proposição do empuxo à mulher, na experiência psicótica, em sua aparente contradição com o axioma da inexistência da mulher expresso no horizonte das fórmulas quânticas da sexuação?

Se lanço tal pergunta, é por entender não ser raro, como vocês bem sabem, encontrarmos formulações antinômicas no ensinamento lacaniano. Normalmente adotamos, para esclarecer tais contradições, o recurso da periodização que consiste em situar, conforme sugere Jacques-Alain Miller, a ideia de um segundo, de um terceiro ou de um último Lacan por oposição a um primeiro Lacan. As contradições derivariam, nesse sentido, de uma reformulação da teoria. Mas quando abordamos a expressão “empuxo a ‘A mulher’ na psicose”, – tradução conceitual proposta por Lacan da Verweiblichung descrita por Freud, a respeito da transformação corporal delirante vivida pelo presidente Schreber –, em sua coexistência com o tema da inexistência de A Mulher (a se grafar com A barrado), notamos que a periodização não permite resolvê-la. Não se pode dizer que se trata aqui de um segundo Lacan contra um primeiro Lacan: elas são formuladas concomitantemente. Vocês a encontram reunidas tanto no escrito “O Aturdito” quanto no Seminário XX, ambos produzidos nesse profícuo ano de 1972. Por isso achei por bem interrogar como se articula essa noção de empuxo à mulher, na psicose, com o tema da inexistência da mulher desenvolvido no mesmo período.

Para abordar, então, essa aparente antinomia, ocorreu-me primeiramente pensar na diferença semântica entre o verbo impessoal “haver” e o verbo intransitivo “existir”. Podemos, efetivamente, dizer que há algo que não existe, quando afirmamos, por exemplo, que há uma jogada que não existe no jogo de xadrez: o movimento horizontal do bispo. Ao considerarmos, por outro lado, a derivação etimológica do verbo existir como ex-sistere, que originalmente significa “provir de”, podemos conceber essa ideia de proveniência em conformidade com a regra que define o lugar discursivo daquilo que há. Existir, nesse sentido, significa, como se diz em francês, “avoir lieu”, ter lugar num sistema ordenado de linguagem. Do mesmo modo que a ideia, por exemplo, do espaço curvo não existia para a geometria euclidiana, por não dispor de um lugar de proveniência nesse sistema teórico, as formações do inconsciente não podiam existir para o pensamento fenomenológico que identificava a psique à consciência. A existência assim se produz, como vocês percebem, nos termos de uma regulação discursiva da linguagem sobre o “haver”: o “existir” seria, nesse sentido, um “haver” que poder “ter lugar” no universo do discurso.

Afirmar, portanto, como o faz Lacan, que A mulher não existe, significa dizer que há um significante, A mulher, que não pode ter lugar, por razões de estrutura, no universo do discurso, pela razão de que não há, no lado feminino das fórmulas quânticas da sexuação, o elemento de exceção sobre o qual esse universo, em que se distribuem os lugares, poderia se constituir. Afim de elucidar, então, o que vem a ser esse universo no qual o existir pode ou não ter lugar, vale retomar o modo pelo qual Lacan articula a dimensão do universal, na forma do “x Fx”, a algo que dele se exclui, na forma de um x que não Fx, assim como esclarecer por que razão o Universal depende, para se constituir, dessa ligação ao elemento de exceção como limite que o nega.

Devo confessar a vocês, como já disse em outros momentos, que demorei muito tempo para entender essa articulação do Universal ao elemento que o nega. Era uma articulação que eu aceitava, por provir de Lacan, mas sem captar a necessidade que a determinava internamente. Mas depois de percorrer o ensino de Lacan, armado com essa pergunta, eu pude notar que a ligação do “para todo” com a exceção, formulada em 1972, já se anunciava dez anos antes, em 1962, em seu seminário ainda inédito sobre a Identificação. A diferença é que se em 1972 Lacan se vale da lógica proposicional de Frege, que se organiza em termos de função e argumento, em 1962 ele ainda se serve da lógica de Aristóteles que distribui seus elementos nos termos gramaticais de sujeito, cópula e predicado. De sorte que o universal, que em 72, se formula como x Fx, ainda se escrevia, em 62, na proposição aristotélica como “Todo S é P”.

Para não me delongar muito, vou resumir uma discussão que tive ocasião de expor mais detalhadamente[1], dizendo que o interesse maior de Lacan, em relação a esse ponto, é o de subverter a leitura aristotélica clássica, ao contestar a ideia de que haveria um Universal previamente dado, do qual a proposição particular se encontra naturalmente subordinada. O que normalmente aprendemos, nos manuais de lógica do ensino médio, é que dada uma proposição universal afirmativa do tipo “todo homem é mortal”, dela deriva, naturalmente, a proposição “algum homem é mortal”. É nesse sentido que a particular se inscreve, no quadrado lógico, como subalterna ou subordinada em relação à universal, como se pode visualizar no quadrado lógico proposto pelo poeta Apuleio no século II:

Todo S é P                                       Todo S é não P

Algum S é P                                     Algum S é não P

Para contestar essa leitura, Lacan se vale de um exemplo que nos permite claramente ver que não há nada de tão natural assim nessa relação de subordinação[2]. Se tomarem o slogan “todo soldado deve morrer pela pátria”, proferido pelo chefe da tropa, vocês percebem que ele é admitido facilmente pelos soldados, que fazem no máximo bocejar ao escutá-lo. Mas no momento em que o comandante afirma que “algum soldado deve morrer pela pátria”, notamos na reação, agora de espanto e medo, que não se trata de uma derivação tão natural assim.

A ideia é que a proposição universal afirmativa – Todo soldado deve morrer pela pátria – é cômoda por ser da ordem do que Peirce propõe chamar de lexis, no sentido em que se trata da pura leitura, da mera constatação de um enunciado em que não se leva em conta o engajamento do sujeito[3]. Mas quando se trata de particular afirmativa – “algum soldado deve morrer pela pátria” -, percebemos que ela toca efetivamente no sujeito, na medida em que agora ele se vê exposto ao risco de sua própria existência. O essencial se encontra no fato, indicado por Peirce, de que a universal afirmativa é um enunciado lógico, mas não ontológico, no sentido em que ela não afirma necessariamente nada sobre nenhuma existência, se tomada por si só. A proposição universal “todo traço é vertical” é verdadeira mesmo que não exista nenhum traço, do mesmo modo que a proposição “todo lobisomem é mamífero” é válida, mesmo que não exista nenhum lobisomem. Sua comodidade, que se faz notar no bocejo dos soldados tropa, se deve ao fato de que ela diz respeito somente a um puro juízo de atribuição, mas não necessariamente ao juízo de existência, conforme se nota no quadrante 4, onde a universal afirmativa e a universal negativa comungam do setor vazio.

O que se percebe, então, no tremor produzido pela segunda sentença – “algum soldado deve morrer pela pátria” – é que a proposição particular se diferencia da universal por ser necessariamente existencial, por dizer respeito a algo que necessariamente existe na experiência concreta do sujeito. Por isso Lacan nos indica que a proposição universal, para ter efetividade, necessita convocar algo que existe no nível concreto da proposição particular e que ao mesmo tempo a nega, que se apresenta como contraditório a ela no nível da proposição particular negativa, para em seguida recusar que ela seja pertinente. Não basta enunciar “todo traço é vertical”. É preciso encontrar o traço que contradiz essa proposição, na experiência particular, e em seguida recusar sua pertinência, através não mais de uma pura lexis, de uma simples constatação, mas do que Pierce nomeia de fasis, termo que agora indica a violência de uma declaração performativa: “nada de traço que não seja vertical”.

Para que isso fique menos abstrato, tomemos, a título de exemplo, o enunciado “todo analista é freudiano”, que é verdadeiro mesmo que não exista nenhum analista. Porém, quando se entra no nível da existência concreta, quando queremos, digamos, fundar uma instituição psicanalítica, encontramos pessoas que se dizem analistas, dentre as quais alguém que se intitula como tal se dizendo não freudiano. Pode ser que haja alguém que se apresenta como analista, porém se apresentando como junguiano, adleriano, reichiano, ou coisa que o valha. Mas para que o universal de uma instituição tenha, então, efetividade concreta, é preciso que se afirme algo como “nada de analista que não seja freudiano”, numa declaração comparável àquele que se encontrava no frontispício da Academia de Platão: nada de filósofo que não seja geômetra. Os junguianos que sejam psicoterapeutas, ou o que bem entenderem, mas “nada de analista que não seja freudiano”.

É nesses termos que podemos pensar a fundação mítica da comunidade humana proposta por Freud, em Totem e Tabu, em relação ao lado masculino das fórmulas quânticas da sexuação. Diante da existência mítica de um pai primevo, dito gozador, não submetido à lei de interdição do incesto, na forma de um x que não Fx, a sociedade dos filhos se engaja, através do seu assassinato, no universal declarativo da lei que se funda através de sua exclusão: nada de x que não Fx. O assassinato do pai primevo aqui representa a própria violência dessa declaração performativa – nada de x que não Fx – sobre a qual se constrói o Universal “x Fx” da interdição do incesto. É nesse sentido que o sujeito só tem lugar de existência, no Universal da comunidade marcado por essa interdição imposta pelo limite do gozo fálico, conforme a lei representada pelo pai morto como Nome do Pai.

Mas se tomarmos, agora, o lado feminino das fórmulas quânticas, notamos que aqui não existe a exceção sobre cuja exclusão se constitui o Universo. É importante enfatizar que dizer “notamos que não existe x que não Fx”, no lado feminino, é qualitativamente distinto de afirmar “nada de x que não Fx” sobre o qual se erige o Universal no lado masculino.  No primeiro caso, temos o que Pierce chama de lexis, uma pura leitura, ou constatação, no segundo caso, temos o que Pierce agora chama de fasis, para se referir ao engajamento de uma declaração performativa. Queremos, com isso, dizer que a lei simbólica, que funda o Universo fálico, é fruto de uma declaração, de um engajamento em relação ao que se apresenta como contraditório a ela. É justamente pelo fato de que a exceção não se apresenta, no lado feminino, que o Universo ali não pode se constituir na forma da declaração da lei do discurso que deve valer “para todos” e assim confere, àquele que nesse Universo se encontra, o predicado da existência.

Tem interesse notar, já que falamos em lei do discurso, que bem antes de formular a inexistência de A mulher, Lacan já se referia à posição feminina, em seu comentário sobre a posição da rainha no conto sobre a carta roubada, de Alain Poe, como a de um ser que se funda fora da lei. Mas a ideia que eu gostaria de tentar desenvolver, sem me estender demais nos detalhes dessa discussão, é que se o que dá a razão da lei depende da representação do pai como puro nome, ou seja, do pai morto, do pai assassinado sobre o qual incidiu a exclusão declarativa “nada de x que não Fx”, o que a psicose nos revela, na irrupção de Um-pai como sem razão, conforme Lacan o formula na página 466 de “O Aturdito”, diz respeito justamente à ausência do limite constituído por esse ponto de exclusão fundante[4]. O Um-pai, como sem razão, não é o Pai morto sobre o qual se erige o Nome do Pai no campo da neurose. Ele é antes expressão do transbordamento pulsional de um pai vivo, como é o caso do Deus de Schreber, que irrompe justamente quando o Nome do Pai deixa de operar como esse ponto de exclusão que dá razão ao Universo, forçando o sujeito, acrescenta Lacan, para o campo do Outro estranho a qualquer regulação do sentido.

Para melhor esclarecer a diferença entre o NP na representação do pai morto, como exclusão que funda a regra, desse Um-pai sem razão na figura do pai vivo que se irrompe no delírio, eu gostaria de retomar com vocês a distinção proposta por Lacan no capítulo V do S. III, entre o Deus que não engana, referido a Descartes, e o Deus que engana, referido ao presidente Schreber. Vocês irão notar que, para Descartes, a possibilidade de fundar o universo da ciência moderna se apoia na garantia de que há um Deus veraz, que não engana, na estrita medida em que esse Deus que não engana se encontra radicalmente excluído do universo dos fenômenos que a ciência pode explicar. A ciência cartesiana não aborda a teologia, ela não trata cientificamente da questão dos motivos de Deus. O Universal “para todo x ciência de x (“x Cx)” se articula à exceção “existe um x que não ciência de x (Ǝx ~Cx)” que faz do Deus cartesiano, tal como se dá com o pai morto de Totem e tabu, objeto de uma veneração sobre a qual Descartes nada tem a dizer, cientificamente. Ele só sabe adorar esse Deus silencioso com a pletora de palavras inúteis que a paixão do amor comporta, sem se permitir esclarecer nada a respeito da natureza ou dos motivos desse Deus.

Não sei se vocês percebem, mas essa exclusão do Deus cartesiano, cuja adoração se separa do campo de neutralidade científica que sua suposição garante, oferece, por dizer assim, o enquadre fantasmático do universo discursivo da ciência moderna. Pois é nesse mesmo sentido que o universo discursivo do sujeito neurótico se apoia na dimensão fantasmática que enquadra o seu discurso, mas sobre a qual ele nada diz. Dali decorre que toda tentativa de explicitar a exceção, expondo os motivos de Deus, põe invariavelmente a perder a consistência deste Universo, conduzindo a impasses que dizem respeito justamente ao lado feminino das fórmulas quânticas da sexuação. Distintamente de Descartes, que se cala sobre a questão teológica, Schreber se exaure em seu esforço interminável de explicar o que Deus quer dele e de sua criação. O Deus de Schreber não é um Deus que se exclui para ser adorado em silêncio. É um Deus caprichoso e tagarela que se manifesta constantemente num mundo que se modifica conforme seus raios se afastam ou se aproximem de sua presença.

Vale, por conseguinte, notar que se o fantasma fornece, por exclusão, o enquadre transcendental da realidade no campo da neurose que neutraliza o gozo da adoração, para transformá-lo em desejo de saber, como se viu a propósito do Deus de Descartes, no lado da psicose o fantasma não opera mais como enquadre, e sim como dispersão invasiva que faz desabar a ordem do mundo. Por esse motivo, a fórmula fantasmática surgida na primeira crise do presidente Schreber – como seria belo ser uma mulher que se submete ao coito – (dass es doch eigentlich recht schön sein musse, ein Weib zu sein, das dem Beischlaf unterliege), que Freud interpreta como expressão de uma pulsão homossexual do qual Schreber tenta se defender sem êxito, será tomada por Lacan numa perspectiva inversa. A manifestação do fantasma não é a causa de seu adoecimento, mas antes a consequência do empuxo-à-mulher, visto que Schreber não se imagina numa relação homossexual com Deus, mas antes numa relação heterossexual em que ele se vê corporalmente obrigado a fazer existir A mulher de Deus.

Schreber não deseja se tornar mulher, é o Outro que isso dele exige, fazendo-o sentir-se envergonhado na condição de objeto de seus perseguidores que o assediam e dele zombam constantemente, chamando-o de Miss Schreber. Não há aqui nenhuma autodeterminação do sujeito, mas antes uma submissão ao Outro como pura vontade de gozo carente de regulação simbólica. Nesse sentido, a fórmula “como seria belo ser uma mulher se submetendo ao coito…” que se exprime no momento de quase adormecimento, quando a censura da consciência diminui sua força, revela a estrutura da psicose antes do seu desencadeamento. O belo aqui nada mais é do que o véu que separa o sujeito do horror de seu encontro com a Coisa, sendo a insônia o último recurso por meio do qual Schreber tenta se proteger do pesadelo no qual ele mergulha até nele se perder completamente.

Voltando, então, ao que havíamos formulado no início, dissemos que se do ponto de vista do Universo fundado numa exclusão fundante, o masculino pode existir como figura do que tem lugar, figura do mesmo que se deixa contar segundo a ideia do que significa ser homem em conformidade com a norma fálica, a mulher não tem existência porque no Universo o feminino não tem lugar. Ocupar a posição feminina significa, para o sujeito, se colocar fora do limite do Universo, alheio à norma do que pode contar como elemento no interior de seu conjunto. Em vista disso, fazer existir A mulher, na experiência psicótica, como resposta à irrupção de Um-pai sem razão, é realizar em si mesmo essa outrexistência que talvez demande, de nossa parte, um neologismo para indicá-la, no sentido de algo radicalmente distinto da existência regrada no interior de um semblante discursivo compartilhado socialmente. É um existir, enfim, drasticamente diverso daquele que tem lugar no interior da ordem do discurso, onde cada elemento só vale, simbolicamente, por sua relação com o sistema do qual faz parte. A solução de Schreber antes consiste, segundo formula E. Laurent, em fazer de si mesmo substância daquilo que não tem representação simbólica, ao se colocar como meio de satisfação desse pai sem lei[5].

É nesse sentido que diante da irrupção de Um-pai sem razão, vivido como ameaça de um deus ignorante que coloca a ordem do Universo em perigo, só resta ao presidente Schreber fazer existir, em si mesmo, A mulher fora da lei, como destinatário de um gozo que não tem lugar no sistema simbólico, uma vez que a exclusão que funda o sistema aqui não funciona mais.  A linguagem, como se nota na língua fundamental do delírio de Schreber, não se desliga do gozo, mas se entrelaça a ele no nível pulsional do qual ela normalmente se separa no discurso regrado da neurose.  Por se fazer destinatário desse gozo não limitado pela castração simbólica, o sujeito se vê obrigado à exaustão de um trabalho sem ponto de basta, cujo termo só pode ser atingido assintoticamente.

Nessa perspectiva, o gozo de A mulher que Schreber faz existir, ao nela se transformar, não se confunde com o gozo inscrito no lado feminino que se separa do gozo fálico, mas ainda assim se encontra localizada em relação ao órgão do qual seria o excesso suplementar. No caso de Schreber, não há essa localização, o corpo é tomado pelos nervos da ilimitada lubricidade divina que dele exige um estado de constante volúpia, como se fosse seu dever oferecer a Ele essa satisfação permanente. Dali se explica finalmente porque Lacan se serve do adjetivo sardônico – e não sarcástico, como foi traduzido na versão brasileira – para descrever o que se passa com o sujeito submetido a esse gozo devastador. Pois o riso sardônico, referido à zombaria atroz desse deus gozador ao qual Schreber se oferece, não deixa de evocar o efeito venenoso provocado pela sardenha, erva extremamente tóxica conhecida como nabo do diabo, no mediterrâneo, a qual, antes de matar, imprime um riso assustador sobre o rosto daquele que a ingere.

 

* conferência apresentada na aula inaugural do curso de psicanalálsie da Clipp “Schreber e a psicose”, 1o semestre de 2023, e gentilmente cedido pelo autor.


REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Tratados de lógica: Organon. Madrid: Gredos, 1988.
FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 21-162. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).
LAURENT, E. Trois énigmes : le sens, la signification, la jouissance. In : La Cause du désir, n. 23. Paris : Navarin, 1993.
LACAN, J. Le séminaire, livre IX: L’Identification (1961-1962). Inédito.
LACAN, J. Le séminaire, livre XV: L’Acte psychanalytique (1967-1968). Inédito.
LACAN, J. Autres Écrits. Paris : Seuil, 2001.
PEIRCE, C. S. Collected papers. Cambridge: Harvard University Press, 1932, v. II.
TEIXEIRA, A. “A fundação violenta do Universal”, disponível on line in: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/edicoesanteriores/index.php/universal.

[1] Cf. A. Teixeira: “A fundação violenta do Universal”, disponível on line in: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/edicoesanteriores/index.php/universal.
[2] LACAN, J. Le séminaire, livre XV: L’Acte psychanalytique (1967-1968). Inédito.
[3] PEIRCE, C. S. Collected papers. Cambridge: Harvard University Press, 1932, v. II.
[4] LACAN, J. “L’Étourdit”, in Autres Écrits. Paris : Seuil, 2001, p. 466.
[5] LAURENT, E. « Trois énigmes : le sens, la signification, la jouissance ». In : La Cause du désir, 23. Paris : Navarin, 1993, p. 35.