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O JOGO TRANSFERENCIAL NO CARTEL

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

Lacan propõe, no “Ato de Fundação” que o ingresso à Escola seja feito via cartel e na “Proposição de 9 de outubro de 1967” afirma que “no começo da psicanálise está a transferência”. Se no começo está a transferência e a entrada na escola passa pelo cartel, é necessário examinar a questão da transferência relacionada aos cartéis.

O cartel permite, a partir da questão de cada um, uma “elaboração provocada”. Mas isso não é tudo, e é inegável que as relações transferenciais pululam em um cartel: são quatro (ou três ou cinco, ou mais) que se juntam – primeiro nível transferencial – em torno de uma questão psicanalítica – segundo nível transferencial – e buscam um mais-um, que se junta ao cartel para descompletá-lo, o que faz com que seja menos-um – terceiro nível transferencial.

Ao permanecer no primeiro nível transferencial, apenas buscando por um “mais-um”, os postulantes de um cartel podem provocar um curto-circuito no segundo nível, o que acarretará os efeitos de grupo, trabalhados por Freud em Psicologia de Grupo e a Análise do Eu (1921).

A questão psicanalítica a juntar os quatro passa necessariamente a ser uma questão de trabalho, mas como observa Miller , o fato de haver provocação ao trabalho mostra que não há vocação para este . Como estimular o trabalho para além da necessidade de ganhar o “pão de cada dia”, como passar da necessidade ao desejo? O segundo nível transferencial, que se dá em torno da questão de cada um, precisa de estímulos que afastem os efeitos de grupo e faça cada um trabalhar. Fundamental o segundo nível, onipresente para os cartelizantes e, principalmente, para o “mais-um”.

Na busca do “mais-um” que provocará o trabalho, emerge o terceiro nível transferencial, que necessariamente deverá ser mediado pelo segundo. Mas quem é o “mais-um’? Como diz Lacan, “embora possa ser qualquer um, deve ser alguém”, alguém que, além de incumbir-se da direção a ser dada ao trabalho, deve ele próprio trabalhar, pois também é membro do cartel, trabalhando uma questão própria. Ou seja, o “mais-um” presentifica o próprio paradoxo de Husserl: está dentro e fora ao mesmo tempo.
O fato de o “mais-um” sustentar uma questão favorece a possibilidade de passar de um trabalho de transferência, característico da análise, para uma transferência de trabalho, característica do cartel. Dar o justo lugar ao objeto no cartel exige que o “mais-um” não se aproprie dos efeitos transferenciais, mas que o remeta a outro lugar, que seja um agente provocador a partir de onde há ensino, a partir da escola de Lacan.
Miller propõe para o cartel a estrutura do discurso da histeria (que Lacan dizia ser quase a mesma do discurso da ciência), e que, se fosse preciso escolher um modelo de “mais-um” escolheria Sócrates, lembrado pelos séculos posteriores pelas provocações a seus interlocutores, como vemos nos diálogos de Platão . O “mais-um” deve colocar pontos de interrogação, o que supõe a recusa em vir a ser um senhor que faça o outro trabalhar, que se recusa a ser aquele que sabe, que se recusa a ser analista do cartel e no cartel.

Cinco reunidos propuseram um tema: estudar o Seminário 16 -De um Outro ao outro, de Lacan, numa leitura linear e colocando e debatendo as questões que surgiam. Proposta feita e aceita pelo “mais-um”, trabalho iniciado: semanalmente, duas horas de leitura e discussões. As questões e as buscas de solução foram surgindo, a ponto de os membros resolverem criar um site que abrigasse aquelas que restavam das duas horas semanais, embora as pesquisas e elaborações dos cartelizantes fossem lidas e discutidas nas reuniões. Trabalhos foram apresentados nas Jornadas de Cartéis da Seção São Paulo.

Passados dois anos dissolvido o Cartel sob protestos dos participantes que desejavam continuar. Como resto, parece haver permanecido o desejo de continuar a estudar a psicanálise em direção à escola.

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Mais-um do Cartel: Seminário 16, De um Outro ao outro
São Paulo, 12 de julho de 2011.

Jacques, Lacan. Ato de Fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

Jacques, Lacan. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

  Jimenez, S. (org.), O Cartel: conceito e funcionamento na escola de Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1994.

 Um castigo terrível dado ao homem pela desobediência no Paraíso foi justamente o de “ganhar o pão com o suor de seu rosto”.

  Outros dos tantos efeitos provocados por Sócrates.

Carlos Eduardo de Almeida LeiteMaria Marta Rodrigues Ferreira, Lucimara Borghi A. Agamme, Priscilla Cheli Mendes, Anna Cláudia C. Fontes.

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