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“O olhar japonês e seus destinos”

 Final de análise e os relatos dos passes dos AE

 

                                                         Maria do Carmo Dias Batista

                                                         14 de agosto de 2003

 

 

Durante este semestre discutiremos o final de análise a partir dos testemunhos escritos daqueles que passaram pelo dispositivo do passe na Associação Mundial de Psicanálise e foram nomeados AE – Analistas de Escola.

 

Começarei lendo um pequeno texto de Roland Barthes, de título: Gosto, nãogosto[1].

Gosto: de salada, canela, queijo, pimentões, pasta de amêndoas, cheiro de feno cortado (gostaria que um nariz especializado fabricasse tal perfume).

Rosas, peônias, lavanda, champanhe, posições levianas em política, Glenn Gould, cerveja excessivamente gelada, travesseiros baixos, pão torrado, charutos havana, Haendel, passeios comedidos, pêras, pêssegos brancos ou de vinha, cerejas, as cores, relógios, canetas, penas de escrever, petiscos, sal cru, romances realistas, piano, café, Pollock, Twombly, toda a música romântica, Sartre, Brecht, Verne, Fourier, Eisenstein, os trens, vinho de Medoc, champanhe tinto, ter dinheiro trocado, Bouvard e Pécuchet, andar de sandálias à noite nas estradinhas do sudoeste, a curva do rio Adour vista da casa do Dr. L., os irmãos Marx, o serrano às sete da manhã saindo de Salamanca, etc.

Não gosto: de lulus brancos, mulheres de calças, gerânios, morangos, cravo, Miró, tautologias, os desenhos animados, Arthur Rubinstein, casas de veraneio, as tardes, Satie, Bartók, Vivaldi, telefonar, os coros de criança, concertos de Chopin, bailaricos da Borgonha, danças da Renascença, órgão, M.-A.Charpentier, suas trombetas e tímpanos, o político sexual, as cenas, as iniciativas, a fidelidadea espontaneidade, as noitadas com gente que eu não conheço etc.

Gosto, não gosto. Isto não tem a menor importância para ninguém. Isto,aparentemente, não faz sentido. E, no entanto, tudo isto quer dizer: meu corpo não é o mesmo que o seu. Assim, nessa espuma anárquica dos gostos e dos desgostos, espécie de picadinho distraído, desenha-se pouco a pouco a figura de um enigma corporal, convocando à cumplicidade ou à irritação. Aqui começa a intimidação docorpo, que obriga o outro a me suportar generosamente, a ficar silencioso e cortês diante de gozos ou recusas de que não compartilha.

 

Tomo o texto de Barthes como descritivo de identificações e suas conseqüências, para introduzir a experiência de análise, de final de análise e de passe de Florência Dassen, nomeada Analista de Escola pela Escola de Orientação Lacaniana, em 1998.

O olhar japonês e seus destinos é o título do testemunho que trabalharemos nesta noite, publicado na Freudiana nº 22, revista da Escola Européia de Psicanálise,Catalunha, 1998, pg. 45-50.

Florência Dassen inicia articulando a lógica do inconsciente em sua trajetória de vida e de análise. Foram duas análises diferentes que somaram treze anos. Uma durou seis, a outra sete anos, e conduziram a um resto de saber, um saber sobre o objeto.

 

Um saber, então, sobre o gozo que cobria cada uma das identificações nas quais ela se encontrava prisioneira, encarcerada. Aparece o primeiro significante importante, um de seus significantes-mestres: encarcerada.

 

Através da análise da série de suas identificações deu-se conta da estrutura idêntica que há entre as identificações e o amor. Ponto de sua particularidade que julga poder estender-se ao universal e servir de ensino para a Escola.

 

O conceito, por assim dizer, que podemos extrair deste passe é: o amor e as identificações têm idêntica estrutura.

 

Por que? É a pergunta que nos fazemos em seguida. Porque são formas de narcisismo. Óbvio, tanto as identificações quanto o amor são formas de narcisismo, e, portanto, formas do império da imagem. Isto terá toda a importância neste caso. Este império faz com que o objeto fique escondido por trás das vestimentas da imagem: tanto as identificações como o amor se sustentam e se afirmam na ignorância do objeto. Porém, é, justamente, o objeto que dá sustentação às identificações e ao amor. O totalitarismo da imagem (toda) recobre a parcialidade do objeto (não-todo).

Entrada em análise. Ela foi tomada por uns ciúmes absurdos. Procurou a segunda análise depois do aparecimento desse novo sintoma.

De uma tal violência, esses ciúmes, que ela percebeu que havia, ali, depois evidentemente de seis anos de análise, uma fixação de gozo que a ultrapassava. A irrupção do sintoma foi o encontro com o real que determinou a procura da nova análise.

 

Estava há três anos com seu parceiro. Os ciúmes se ligavam a dois traços fundamentais: o primeiro, que qualquer mulher poderia, como ela fez, se dedicar ao trabalho de conquista, trabalho imenso para conquistar o seu homem, seu parceiro, o mesmo trabalho que ela havia feito. Assim, qualquer mulher poderia tomá-lo dela, arrebatá-lo. Qualquer mulher que tivesse essa característica de trabalho ativo para conquistar um homemQualquer. Qualquer mulher que fizesse parte dessa série, da qual e na qual ela era a primeira. A série das mulheres conquistadoras ativas. Qualquer mulher que tivesse essa mesma forma de gozo, vamos dizer, um gozo com o trabalho ativo, seria sua rival.

 

Um segundo motivo, ou segundo traço desses ciúmes é o traço japonês. Enigma que atravessa toda a análise. A mulher japonesa constituía um enigma: não fazia parte da série qualquer mulher. Esse traço, o traço japonês, é tão forte nesse momento, que ela tem pesadelos terríveis com a mulher japonesa. Tem idéias obsessivas durante o trabalho, o tempo inteiro pensando no traço japonês, na mulher japonesa, uma verdadeira compulsão.

 

A mulher japonesa também poderia tirar-lhe o parceiro, porém, à diferença das outras, aparecia angústia.Com qualquer mulher há rivalidade e rivalidade, como uma das formas do imaginário, gera competição, gera briga, gera luta, mas não angústia. No caso da mulher japonesa, pesadelos, sintomas, atos obsessivos e angústia. Angústia paralisante.

 

Ela se perguntava já no começo – e isso marca a entrada na segunda análise –  por que a mulher japonesa queria prejudicá-la. Assim entra em análise. O enigma do traço japonês sustentará o trabalho dos demais sete anos de análise. É evidente que a pergunta por que ela quer me prejudicar? é colocada ao desejo do Outro. Por que o Outro teria esse desejo? Porém, também, é colocada a seu próprio desejo. O desejo do homem é o desejo do Outro, ensinou Lacan…

 

O trabalho com o significante japonesa –encarcerada em identificações com japonesa– fez aparecer o trauma, algo que estava esquecido, que não havia ainda sido tocado na primeira análise: o encontro com o insuportável gozo de autodestruição da mãe como suprema vingança contra o homem.

 

Trabalhando o significante japonesa, ela se lembrou que ficava olhando a mãe durante seus processos de autodestruição para se vingar do pai, para se vingar do homem. Associou à japonesa do filme O Império dos Sentidos que, como vocês sabem, castra o homem na última cena, no final do supremo gozo mortífero que os dois engendram.

 

A partir da história da mulher japonesa ela desenvolveu novos sintomas – terror, temor, fobia, inibição diante da Outra mulher, qualquer mulher, por ter concluído que o Outro sexo é mortífero, devastador. Mesmo com temor, fobia e inibição diante da Outra mulher, ela não parava de convocá-LA, provocando mais temor, inibição e fobia, justamente para manter esse círculo gozoso que acabava de descobrir, de se descobrir nele.

 

A análise, pouco a pouco, foi conduzindo à queda dessa identificação =   fascinação com o horror, com a tragédia, com a morte (Império dos Sentidos – horror – tragédia – morte, associadas à mãe e à ela, que, fascinada, se identificava, encarcerada).

 

O idílio amoroso com o parceiro foi a forma que encontrou de velar o horror, a fascinação, o gozo com a morte, com a destruição, com a tragédia.

 

A queda dessa identificação produziu um saber: ela se situava como objeto do fantasma materno. Podemos voltar a isso: durante o império da imagem, aquela identificação escondia, recobria o objeto, recobria sua posição de objeto do fantasma materno.

E é este o principal saber que ela quer nos transmitir, transmitir à Escola, com sua análise, com seu passe: a maneira pela qual o amor e as identificações, emsua estrutura narcísica, recobrem, vestem, o objeto.

 

Situar-se como objeto do fantasma materno foi seu imperativo de gozo.

 

Imperativo de gozo nos remete imediatamente a Kant com Sade – goza! e à estrutura do supereu, produto da identificação com o gozo mortífero da mãe e suas cenas de autodestruição.

 

Mantém-se inalterado o gozo da ainda analisante em relação ao seu parceiro, isto é, ela continuava achando que o amor, o idílio, iriam dar conta.  Desconhecia que o excesso de gozo vindo da identificação com a mãe apareceria como resposta sintomática na relação amorosa. Quer dizer: além da identificação com a mãe, há excesso de gozo praticado como sintoma na relação amorosa. Isto ficará mais claro adiante.

 

Vamos agora ao terceiro ponto, a construção e realização do fantasma.

 

A demanda ao Outro neurótica, na posição de impotência, da analisante é: tire-me deste cárcere. Então, o segundo saber construído, um saber sobre seu próprio fantasma – não aquele da mãe, mas de sua posição no fantasma da mãe –, é o fantasma de encarceramento, estar no cárcere, estar na prisão, encarcerada nas identificações.

 

A qual Outro ela demanda? Ao analista. Tire-me deste cárcere! O amor vem ocupar a função, como repeti várias vezes, de velar o horror do destino de sua mãe. O horror por ela presenciado do destino materno. Deveria portanto ser um amor único e absoluto.Tire-me deste cárcere! é uma demanda dirigida ao Outro e no lugar de cárcere ela coloca o amor único e absoluto, aquilo que irá salvá-la, pensa ela até então.

A vida amorosa é o cárcere de gozo. Um amor único e absoluto exige o mesmo do outro. Então, existia uma demanda de amor dirigida ao parceiro muito grande, excessiva. Não houve resposta do parceiro, o que gerou um desejo insatisfeito que retroagiu, aumentando violentamente a demanda. É o circuito do amor único e absoluto. Porém, ela já detectava nisso uma vontade de gozo ou uma vontade de gozar desse circuito que denomina “cárcere de gozo”. Este é o meu cárcere de gozo.

 

 

A construção do fantasma vem com frases que ela vai dizendo na análise: O único bem para uma mulher é o seu parceiro.

 

Aqui está o nó do amor com a pulsão. O nó, o circuito, o cárcere de gozo, ou o nó pulsional, não cedem com a análise, ao contrário, a analisante vai insistir sempre que há uma coincidência entre amor e morte e que a única forma de sair disso é o amor único e absoluto.

 

Portanto, o gozo sólido, consistente, do objeto daquele olhar carregado de horror, que era o olhar dela para a mãe e da mãe para ela, nos momentos em que a mãe se autodestruía até matar-se, o objeto olhar não cessava de olhá-la e, aí, isso se articulou ao olhar japonês. Articulou-se como? Nas associações  da análise.

 

A demanda excessiva ao parceiro ela denominou ativismo: trabalho ativo para conquistar um homem. Aí avançou. O ativismo, diz, é a outra face da denúncia que fazia, enquanto histérica, da posição do pai em seu traço de passividade. O ativismo foi a resposta histérica à passividade do pai. Se a mãe se autodestruiu, se matou como suprema vingança contra o pai, ela, ativamente, denunciou a passividade do pai.

 

Chegou a um momento da análise em que não havia saída. Ela pára aí, empaca, não produz nenhum saber, nada mais. Porém, continuou indo às sessões e… a denúncia contra o pai dirigiu-se à transferência. Boa ilustração da clínica sob transferência: não existe análise em ausência. Tem de ter um corpo, ou uma grande orelha, ou algo assim, um pedaço de corpo. Então, a denúncia do pai tomou totalmente a transferência e osem saída de sua vida em circuito de gozo encarcerado foi para a análise, lógico! O analista passa a encarnar para ela o passivo – como o pai.

 

A posição base do fantasma é: o Outro me encarcera, você, meu analista me encarcera e ameaça.Você sabe tudo, pra que eu vou falar? Então, quando está nesse ponto muito grave, nesse ponto sem saída, aparece o encontro com o real de uma passagem ao ato. Para que falar? Ela foi agir. O que ela fez? Precipita-se, sempre muito ativa, com muita pressa, precipita-se cega – sem olhar, sem ver – andando rápido para frente, fugindo e atravessa uma porta-janela de vidro que estava fechada.

 

O analista não faltou nessa hora. Tendo visto a cena, foi atrás dela. Ela perguntou: por que você me encarcerou? Depois da passagem ao ato encontrou uma forma de continuar a falar. Por que me encarceraste? Isto possibilitou a continuação da análise. Ela trabalhou a semelhança da pergunta dirigida ao analista ao “pai, não vês que estou queimando, que estou ardendo”, do sonho de Freud. Em seu caso a frase seria “pai, não vês que eu – ela faz um jogo de palavras em espanhol – ardo, pai, não vês que tardo”.

 

O analista, então, demonstrou que ela estava sem saída por mais que tivesse pressa.“Pai, não vês que eu tardo – eu tenho pressa.

Duas intervenções do analista, a partir da pergunta “por que você me encarcerou?”,marcaram a mudança. A primeira intervenção foi denunciar a passagem ao ato como um falso ato, um falso ato para sair do cárcere. Esta interpretação moveu alguma coisa no ativismo: ela passou a denunciar como passivo o próprio parceiro. A série dos passivos: o pai, o analista e agora o parceiro. E ela se deu conta que o ativismo da passagem ao ato, essa coisa louca de correr cega em direção à porta de vidro, era uma agressividade dela contra seu próprio eu, com base ainda na identificação à mãe, uma manifestação da pulsão de morte. Ainda um empuxo ao mesmo gozo da identificação com o objeto do fantasma materno. Não era – finalmente ela concluiu – o Outro que a encarcerava, mas ela mesma, com sua demanda excessiva, permanecia encarcerada no Outro. Muito simples, não é? Todos nós já passamos por coisas semelhantes. A demanda excessiva de amor conduz o sujeito a estar sempre se encarcerando no meio do Outro.

 

Segunda intervenção do analista. Ele a interpelou sobre a identificação ao trabalho compulsivo, sobre o ativismo: você está sempre começando cegamente. Portanto, se você começa sempre cegamente, começa sem olhar.

 

Conseqüência: produz-se um corte entre o olhar e a morte. O lugar que era preenchido pelo olhar mortífero da mãe e da mulher japonesa do Império dos Sentidos, fica vazio. Há um vazio, um intervalo, uma pausa, uma quietude entre o olhar e a morte. O ativismo, a pressa sem descanso, foi o gozo tremendo que a conduziu à passagem ao ato. Já a solução do desejo não era pelo ativismo.

 

Terceiro ponto de saber que se estabelece. A solução do gozo era o ativismo: pressa, trabalhar compulsivamente, etc. E a solução do desejo foi o vazio que veio no lugar da vinculação entre o olhar e a morte. O olhar está separado da morte. A separação produziu um vazio interpretado por ela como solução do desejo, uma espera. A solução do desejo, essa espera, o espaço aberto em sua  vida, produziu também um corte no trajeto pulsional, no gozo com o horror, na fixação. A grande modificação no gozo que a análise promoveu foi introduzir a espera, i.e, uma mudança no tempo que, de alguma maneira, juntou gozo e desejo. Ao invés da pressa, a espera.

 

Ponto quatro: a queda do objeto. Nesse momento da análise ela está sem angústia, já separada das identificações edípicas, separada, portanto, do sentido da tragédia (e há várias tragédias em seu relato). Amor, olhar e morte têm um outro tipo de enovelamento nesse momento da análise, tornando possível avançar em direção ao horror. Era necessário voltar ao horror. Necessário buscar sentido para o horror que sentia diante das cenas de autodestruição da mãe, diante da cena da morte da mãe. Aí aconteceu o grande  ganho de saber, o encontro com o real do horror que a dividia. Ela encontrou o ponto cego. Lembremos que mencionei os significantes cega, cegueira, atravessou a porta cega, sempre cega, sempre sem olhar o ponto cego do olho japonês. Quando ela pôde – depois da passagem ao ato, depois das interpretações, depois do tempo de espera – quando ela pôde voltar a trabalhar o horror, deparou-se com o ponto cego do olho japonês.

Direi como. Vejam só a manifestação do inconsciente. Que coisa! Em uma sessão – ela relata assim mesmo – se pega dizendo: Minha segunda filha tem um olhar muito oriental… nós a chamamos A Tibetana… na verdade, esse olhar rasgado é meu… minha mãe me chamava A Chinesinha, e é também um traço do olhar dela, minha mãe. Bem, é evidente que este foi um ponto de queda, !!!bumba!!!, assim mesmo, deve ter sido com esse barulho a queda, um ponto de descontinuidade, queda do objeto olhar, do objeto olhar japonês,  objeto do fantasma, porque ela atravessa para o outro lado do quadro.

 

O atravessamento do fantasma consiste em dar-se conta de que era ela a chamada de Chinesinha, de que a filha é chamada A Tibetana, de que a mãe também tem o olho puxado. Então como é isso de atravessar do outro lado do quadro? Assim: a analisante não é mais olhada pela japonesa, mas o mundo é olhado por uma japonesa que é a analisante. Lógico, é dela o olhar japonês que é, inclusive, como intitula seu testemunho – O Olhar Japonês.

 

O olhar rasgado revela-se seu traço, com duplo valor. Primeiro, ligado ao desejo, como desejo do Outro, e, segundo, ligado à pulsão na voracidade do olho japonês. Esse ponto duro é, ao mesmo tempo, o momento de passagem do trágico ao cômico. Ela riu: Como é que eu nunca me dei conta disso? Passei por toda a tragédia do Império dos Sentidos, do império da imagem e nunca me olhei no espelho para ver que meu olho era um olho japonês! Seu olhar rasgado passa a valer não como horror, mas como algo que pode interessar o outro. E a voracidade do olho japonês liga-se à voracidade de sua própria pulsão. Não vamos nos esquecer – voltando ao ciclo do cárcere de gozo e da demanda excessiva de amor -, que o matema da pulsão é o sujeito frente à demanda. Então, toda a voracidade que ela detecta, em momentos anteriores da análise, como vontade de gozo fantasmático reaparecerá no final como um valor, como um a mais, como um mais de gozo. Sim, ela era voraz. Ou havia uma voracidade no olho japonês.

 

Então, esse ponto de real, esse plus de gozo, irá permitir que ela faça uma ordenação, uma seqüência lógica para sua análise. O que era sinistro pôde ser reconhecido como seu próprio gozo e não do Outro ou do desejo do Outro. A tríade pulsional ver, ser vista, se fazer ver foi incorporada como própria e não mais como uma voracidade do Outro em vê-la. O que era sinistro – a mulher japonesa –, o gozo de ser por ela prejudicada e a conseqüente angústia, foi demonstrado como seu particular modo de gozo.

 

O passe. Tendo ordenado a análise ela pediu o passe. Este possibilitará, segundo suas palavras, o novo destino das marcas do gozo.  Organizará da seguinte maneira: há três marcas do gozo ou três nomes do real, o olhar rasgado, a espera e a atividade. Não mais ativismo, mas atividade. Os três são marcas em seu corpo, são três nomes do real.

 

Queria lembrar que no último capítulo do Seminário 11, Lacan trabalha as tríades dos objetos da pulsão. E ele é muito claro quando diz que todas elas, ver,ser visto,se fazer ver ou comer,ser comido,se fazer comer, e as demais,  têm como base o par atividade-passividade, sadismo-masoquismo.

 

Então, ela dirá que essas três marcas de gozo, esses três nomes do real, são também três limites. O olhar rasgado limite de um corpo. Aqui também pensei  no final do texto de Barthes: dizer do que gosto e não gosto (identificações) só serve para mostrar que meu corpo não é igual ao seu, há um enigma.

 

Assim, se o olhar rasgado é o limite do corpo, a espera é o limite do inconsciente e a atividade o limite da pulsão, onde predomina.

 

Isto nos permite desenhar o nó RSI, colocando no Real a atividade, no Simbólico, a espera e no Imaginário, o olhar. E, ainda, a atividade ligada ao gozo e a espera, ao desejo.

 

A identificação ao sintoma após a travessia do fantasma pode ser pensada como o modo que ela encontrou de saber  fazer – ela chama modo de fazer,  com os três nomes do real. Cada um à sua vez. Esses três estirões, pontas que aparecem pois o restante do saber ficou para sempre escondido, esses três picos de saber organizaram os trajetos do gozo que deram forma ao nó, a partir do buraco central, o buraco da pulsão. Porém, a borda da pulsão desenha-se pelo impossível do saber alcançado. Ela chegou ao impossível. Isto é, o significante – mestre japonesa transformou-se emletra, um ponto ilegível para o inconsciente. O horror da morte e do sexo, os traumas do olhar japonês, não foram suprimidos, mas recolocados, re-enovelados, em seu próprio corpo.  De sintoma transformaram-se em sinthoma.

 

Então, ela concluiu que velou novamente o real, como fazia no início (imagem, amor e identificações). Porém, um velamento organizado a partir do real: o resto que sobrou do trauma, esse impossível que não se resolveu com a análise, o horror do amor, da morte e do sexo, o horror de presenciar a autodestruição e morte da mãe, resto impossível de qualquer leitura a mais, é  japonesa como letra que, transformado em marca subjetiva, passa a ter um valor de menos para mais. É sua particularidade incorporada, ela éjaponesa, o sintoma. Ela mesma concluiu assim. O sinistro passa a fazer parte de seu desejo, ser um sintoma. Vou ler o finzinho que é muito bonito. A análise foi o que me permitiu fazer de minha relação muito acordada, muito desperta, muito ativa com a morte, somente um desejo de despertar, um resto. O ativismo se esvaziou em atividade. O real do sintoma colocou-se desde o início da análise: o que não cessava de olhar-me nas mulheresE o passe me permitiu reinventar as marcas do gozo – que são essas três – simplesmente podendo fazer com elas algo novo, inscrevê-las em outra genealogia de transferências, não somente com o analista, mas com o coletivo que faz a psicanálise. E na dignidade do novo amor, não como amor à verdade – aquele da histérica – mas ao saber do impossível que se une ao saber fazer com os semblantes.

E, assim, Florência Dassen termina.

 

 

Motivos pelos quais escolhi este passe: o primeiro, é que, por ser mais antigo, – de 1998 – há grande clareza no testemunho. Os testemunhos atuais são muito mais cifrados. Segundo, por ser caso de histeria, onde começou a psicanálise, um caso de histeria grave, com passagens ao ato, com a história bastante marcada pelas passagens ao ato, tanto da mãe quanto dela mesma. Para demonstrar quanto pode ser grave uma histeria, e, ao mesmo tempo, quanto possibilita trabalhar com desejo, demanda, pulsão, gozo, atividade, passividade. E, ainda, como destaquei no início, a transmissão da forma pela qual o amor e as identificações velam o objeto. Obrigada.

 

Sandra – Como demarcar o final da análise dela? Pelo o que entendi, esses três limites foram construídos no momento do passe.

 

Maria do Carmo – Sim. Como três limites. Mesmo como três marcas do gozo, três nomes do real.

 

Sandra – Por que o olhar não é o que faz o nó? Por que o olhar está do lado do imaginário? Eu fiquei pensando: o que é que prende os três registros? É o vazio, o olhar esvaziado. Eu estava acompanhando e imaginei que o olhar fosse estar no meio, esse olhar esvaziado, o olhar rasgado, e não o olhar do início. O nome que ela dá para o passe, por que é que ela colocou do lado do imaginário e não no centro onde estaria fazendo a junção dos três registros? O que é que junta? O que é que faz com que esses três registros estejam enovelados?

 

Maria do Carmo – Na verdade, tem um segundo nó no final, onde ela coloca o gozo no Real, o desejo no Simbólico e o amor no Imaginário. O que enovela é  japonesa, em minha opinião. Japonesa enquanto letra. É o próprio significante que, de significante-mestre, passa à letra. Por que não tibetana, ou chinesa, ou oriental, todos os nomes que já haviam sido dados para o olhar rasgado? De onde aparece esse japonesa? Ela diz que os três pontos de saber, possibilitaram a formação do nó em torno do buraco, como você estava dizendo, buraco cuja borda se desenha pelo impossível que ela alcançou. Qual foi o impossível? Foi o significante-mestre japonesa ter se transformado em letra e permanecido ilegível. Mesmo porque o trauma do olhar japonês não se suprimiu totalmente, o que mudou foi o sentido gozado. Ao invés do sentido ser de fora dela para dentro, passa a ser de dentro para fora. É ela a mulher japonesa que goza, deseja, ama, com variações pulsionais.

 

Sandra – Eu pensei em termos do objeto. O objeto olhar como o objeto que faria a junção dos três registros. No início da análise um olhar aterrador, como o Outro a vê, como a mãe a vê, esse olhar mata; no final o olhar esvaziado no  direcionamento ao Outro, faz uma mudança. Não é um olhar completamente explicado, esse olhar rasgado, mas antes tinha um sentido, não só um sentido do Outro para ela, quanto um sentido de horror, de morte. Então, ao fazer essa inversão de sentido, permanece o olhar enquanto objeto, só que o olhar agora é mais enigmático. Como é que ela vê a partir do olhar japonês, o olhar?

 

Maria do Carmo – Outra possibilidade, Sandra, é o próprio enovelamento, isso que ela vai chamar, com Lacan, sinthoma, quando diz: eu sou o sintoma, na medida em que não suprimi o trauma. Pode ser que o que enovele os três registros seja o quarto nó, teria de se desenhar um quarto nó…

 

Sandra – Tracejado…

 

Maria do Carmo – Ele não estaria só entre o Simbólico e o Imaginário, como em Joyce, por exemplo, mas pegaria um pouco dos três registros, um quarto nó meio assim… uma espécie de laço, mesmo. Porque ela diz: eu sou o sintoma, o sintoma ambulante.

 

Sandra – Mas, quando você diz ser um caso de histeria grave, já era um sintoma ambulante, mais que ambulante, um sintoma correndo, uma correria.  Uma histérica, com todos os apetrechos característicos da histeria, porém, evidentemente, com o trabalho de elaboração pode-se reduzir a um traço mínimo, não é mais aquela histeria tão deslumbrante. Mas, não precisaria fazer todo um trabalho para dizer eu sou um sintoma. A diferença entre o sintoma do início e o sintoma do final tem de ser alguma coisa mais sutil.

 

Maria do Carmo – Aí seria o sinthoma, no sentido de juntar o olhar rasgado, a espera e a atividade. Como saber fazer com estes três restos de saber?

 

Sandra – Não seria como saber fazer com a histeria?

 

Maria do Carmo – Não. É como saber fazer, isto é importante, com o olhar rasgado, com a espera e com a atividade, sem ser atuando com o sintoma histérico. Como saber fazer com os três restos e não com a histeria.

 

Pergunta – No final da análise ela continua com o sintoma, mas talvez isso não a engane, ela conhece, ela sabe disso. No começo não sabe nada, no final continua o sintoma, que não engana. É o saber.

 

Pergunta – Isso é o final de uma análise? Ela sai mais esclarecida? Estou brincando com isso, mas onde está a diferença? Na questão do saber?

 

Maria do Carmo – Não. Está justamente em como é que ela vai lidar com o amor, com o sexo, com a morte, com o término da demanda excessiva de amor e com a angústia. Ela mudou muito.

 

Pergunta – Quando você estava falando do circuito do cárcere, do ver-ser visto, houve um ponto que ficou opaco para mim. Aí eu lembrei de sua referência ao Seminário 11. Parece-me que foi o que aconteceu aí que possibilitou o nó, porque o que faz a amarração do nó é o objeto; dá-se através do objeto.

 

Maria do Carmo – Pelo esvaziamento, pela queda do objeto.

 

Pergunta – Sim, mas através do objeto, a passagem do olhar japonês. Através desse trabalho com o objeto no nível pulsional foi possível uma amarração outra que não a da histeria.

 

Maria do Carmo – Sim, ela estava cega. A comicidade estava presente desde o começo, desde o momento em que ela falava do olhar japonês e da mulher japonesa, com os olhos rasgados estampados em seu rosto, sem ver. Sendo vista pelo analista. Então, ela viu e se fez ver, passou da tragédia à comédia, o Witz, ao mesmo tempo uma cegueira, era um olhar que não via. Pode estar aí  a dificuldade que estamos tendo para entender como ficou o objeto.

 

Sandra – Ela não se via. Ela não olhou o próprio olhar. O objeto as mulheres japonesas, esse sujeito via.

 

Maria do Carmo – Sim, antes não via nada além desse objeto. Um olhar cego,  com toda pressa, toda a coisa atabalhoada, como o analista marca, um começar sempre, cegamente. A passagem ao ato acontece por cegueira total; então, era um olhar, objeto que era visto, mas não via. O ver, no pareamento, está totalmente dirigido para o olhar japonês. E acho que ela só via o olhar japonês enquanto ameaçador. Portanto, cega para todo o resto. E quando ela pôde fazer a troca: ver-se nas mulheres japonesas, aí…

 

Sandra – Se vamos para a linha do sentido, do Império dos Sentidos, se vamos para a linha do japonês, para o sentido da palavra, temos de procurar referências no sentido do filme, da tragédia. O traço do olhar japonês não é o japonês, o Império dos Sentidos no país Japão.

 

Maria do Carmo – É, pelo menos, tibetana, oriental, chinesa: outros significantes que faziam menção ao que, depois, ela viria nomear olhar rasgado, que também tem o aspecto de esvaziado.

 

Sandra – É, não tem realmente um sentido. Ficou uma letra. Se o japonês fosse japonês, no começo da análise ela interpreta isso, interpreta como um sentido.

 

Maria do Carmo – Fica o impossível, uma cifra,  japonesa. Indecifrável.

 

Pergunta – O circuito pulsional não muda, não cede, na análise? Ele permanece o mesmo no final da análise? O que muda?

Maria do Carmo – Neste caso, o circuito pulsional, aquele da demanda de amor, do encarceramento de gozo, estava sem saída até um determinado ponto da análise, o que levou à passagem ao ato. Mas, mudou, sim. E, por exemplo, vocês poderão comprovar no próximo caso, que há mudança nos objetos parciais também, nos objetos pulsionais. De todo maneira, houve uma mudança, mesmo tendo permanecido o mesmo objeto. Como destacou a Carmen, houve uma mudança nos destinos.

 

Sandra – Num primeiro momento o olhar está sustentado no fantasma, ela enquanto sujeito e a mulher japonesa como objeto. Então, esse objeto olhar preenchido de sentido é o que dá sustentação ao fantasma…

 

Maria do Carmo – A substituição do objeto do fantasma pelo objeto da pulsão.

 

Sandra – Alguma coisa que dê borda ao objeto a.

 

Maria do Carmo – Bem, são 23:25. Até o próximo mês.