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Obesidade como sintoma contemporâneo

Gisele Lins Prado

Introdução

Vivemos em uma cultura na qual aparentemente o “Outro não existe”, isto é, em que os ideais coletivizantes esvaziaram-se em benefício de arranjos sintomáticos sem hegemonia da função paterna, da linguagem, do simbólico. Estamos numa cultura em que, talvez, o supereu, o discurso do Mestre, não se apresente mais encarnado num Outro coletivo, tal como aprendemos a reconhecê-lo na função edipiana do pai. Quando o pai não é mais o sintoma coletivo, o que domina na cultura é o que Lacan chamou de “desejo da mãe”, isto é, a pulsão de morte desordenada e sem lei, a angústia traumática e as ancoragens imaginárias da pulsão (Santos, 2002).
Miller (2000) nos fala sobre a “a ruína do Ideal e a prevalência do objeto mais de gozar” como uma perspectiva do modo de gozo contemporâneo. Cita a dissolução de comunidades, da família ampliada, das solidariedades profissionais e diz que estamos vivendo um “desenraizamento” (p. 201).
Na clínica atual recebemos, cada vez mais, demandas de tratamento para sintomas que parecem expressar essa relação do homem contemporâneo com o desejo e o gozo. O ser-falante que não pensa, usufrui do próprio corpo através de condutas como as toxicomanias, as mais diversas formas de compulsões (alimento, sexo, jogo, compras, internet etc.), as bulimias e anorexias, as depressões e os pânicos. Como explicar esses “novos sintomas”? O que a psicanálise tem a dizer?
Meu contato com os pacientes obesos teve início há seis anos, durante o curso de especialização em psicologia hospitalar na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no Ambulatório de cirurgia bariátrica, e se mantém até hoje em uma instituição de saúde privada.
Considerada pelo discurso da ciência como uma doença epidêmica e um grave problema para saúde pública mundial, a obesidade é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “excesso de gordura no organismo”, levando-se em conta o índice de massa corpórea (IMC) – peso em quilogramas divididos pelo quadrado da altura em metros (Claudino, 2005).

Valor IMC

Classificação

Abaixo de 18,5

Abaixo do peso

18,5 – 24,9

Peso normal (eutrofia)

25,0 – 29,9

Sobrepeso

30,0 – 34,9

Obesidade grau I

35,0 – 39,9

Obesidade grau II (severa)

40,0 e acima

Obesidade III (mórbida)

Fonte: Site Abeso (dez/2010)

Neste primeiro contato com a obesidade eu me vi diante de pessoas que chamavam a atenção pelo tamanho dos seus corpos e pelas inúmeras queixas em torno desta condição. O grande número de inscritos neste programa comprova os dados apontados por órgãos de pesquisas como o IBGE (IBGE, nov/2010), que nos diz que o número de pessoas com IMC maior que 30 kg/m2 é estimado em 250 milhões, ou 7% da população adulta do mundo, ultrapassando o índice de desnutrição, que passou de 29,3% (em 1974-75) para 7,2% (em 2008-09).
Outros dados também extraídos do discurso da ciência nos dão uma ideia da expressão e do espaço que a obesidade vem assumindo no cenário contemporâneo. A Associação Internacional para o Estudo da Obesidade – IASO – constituiu uma Força Tarefa Internacional de Obesidade (IOTF) que mantém um banco de dados sobre a situação do sobrepeso e da obesidade em adultos e crianças em 141 países:

  • A prevalência de sobrepeso e obesidade nos adultos varia muito entre os países, indo de 5% na Índia até quase 80% na Papua Nova Guiné.
  • Nos EUA:
  • dois terços dos adultos estão acima do peso; a taxa de incidência de obesidade é de 25,6%;
  • entre 2005 e 2008, apesar dos investimentos de órgãos governamentais e instituições de saúde, essa taxa não só não diminuiu como cresceu 2%;
  • em 2008, o CDC americano constatava que nenhum dos estados  norte-americanos conseguiu atingir o objetivo da campanha “Pessoas Saudáveis 2010”, que era reduzir a incidência da obesidade para 15% (IOFT, dez/2010).

No Brasil, dados da ABESO (Associação Brasileira de Estudo da Obesidade) apontam que aproximadamente 43% da população está acima do peso e, destes, 13% são obesos. Se o crescimento continuar nesse ritmo, a projeção é de que em 2030, 30% da população brasileira será obesa. Ao mesmo tempo, destaca-se o rápido crescimento entre crianças e adolescentes. Estudos realizados nas maiores cidades brasileiras estimam que 30% das crianças e adolescentes apresentam sobrepeso e obesidade (ABESO, dez/2010).
O sobrepeso e a obesidade aumentam o desenvolvimento de uma série de doenças graves e crônicas (diabetes, hipertensão arterial, doenças cardíacas, acidente vascular cerebral, osteoartrites, hipercolerestemia, dislipidemias) elevando os índices de adoecimento, internações e mortalidade decorrentes dessas doenças.
Enfim, os números indicam que a obesidade, na atualidade, é um fenômeno em expansão que não discrimina idade, etnia, nível sócio-econômico. Por exemplo, as tentativas de relacionar esta condição à vulnerabilidade de mulheres, por conta de eventos hormonais como menstruação, gestação e menopausa passam por um questionamento, já que o número de homens obesos atualmente é maior do que o de mulheres (na década de 70 havia 18,5% de homens obesos para 50,1% em 2008-09, e entre mulheres, estes índices variam de 28,7% para 48% no mesmo período) (IBGE, nov/2010).
Diante deste crescimento epidêmico, a obesidade tomou proporções gigantescas, não só em número de pessoas acometidas, mas também pela intensidade dos efeitos deste descontrole de peso, atingindo níveis muito elevados quando se ultrapassa o que é entendido como “saudável” para um indivíduo. Novamente recorrendo às quantificações utilizadas para diagnosticar esta condição baseadas no IMC (índice de massa corpórea), é considerado obeso mórbido o indivíduo que apresenta um excesso de peso corporal correspondente a 40% do seu peso ideal, ou seja, com IMC maior ou igual a 40 kgm2, o que aumenta a predisposição a outras doenças (comorbidades).
De maneira geral, uma pessoa que chega a obesidade mórbida já se submeteu às diversas formas de tratamento disponíveis, com foco para o aumento do gasto energético ou na diminuição do aporte calórico para os tecidos através de dietas alimentares, uso de fármacos e prática de atividade física.
Por observar as dificuldades em obter “sucesso” diante deste tratamento, o discurso da ciência atende a esta demanda produzindo uma forma de tratamento cirúrgico para a obesidade mórbida, a cirurgia bariátrica. Suaindicação está baseada em alguns critérios estabelecidos pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica(SBCBM, nov/2010)
– Indivíduos com índice de massa corpórea (IMC) acima de 40 kgm2;
– Pacientes com IMC maior que 35 kgm2 e afetados por comorbidades (diabetes tipo 2, apneia do sono, hipertensão arterial, dislipdemia, doença coronariana, osteoartrites e outras);
– Tratamento clínico anterior insatisfatório no controle de peso;
– Boa compreensão dos riscos e mudanças de hábitos após a cirurgia.
Ainda sobre esta perspectiva, a cirurgia é entendida como uma ferramenta importante para um paciente portador de uma doença crônica, que precisa de tratamento efetivo em curto prazo porque tem a vida ameaçada pelo excesso de peso. No entanto, a base etiológica da obesidade exige que as demais facetas do fenômeno sejam também abordadas e por isso, no caso desses pacientes, a literatura confere papel relevante ao suporte psicológico associado à cirurgia, por entender que a tentativa de atuar isoladamente sobre qualquer um dos fatores causais acarreta o risco de inviabilizar os bons resultados da intervenção (Benedetti, 2004).
Enfim, no campo da ciência, o que se percebe é uma tentativa de sistematizar os fenômenos orgânicos e reduzir as desordens da subjetividade. A exemplo disso temos que a obesidade é incluída na Classificação internacional de Doenças (CID 10) como uma condição médica geral, não aparecendo no DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) porque não foi estabelecida uma associação consistente com uma síndrome psicológica ou comportamental.
Por outro lado, se isolarmos o comportamento alimentar compulsivo, temos o TCAP (Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica), este sim, incluído no DSM IV. Inicialmente como um possível transtorno alimentar (por conta das pesquisas ainda em andamento) e recentemente confirmado como um novo diagnóstico a ser incluído no DSM V, assim como já acontece com os quadros de Bulimia e Anorexia Nervosa.
A prática clínica faz perceber que estamos diante de pessoas que, além de “pesadas”, apresentam um sofrimento emocional significativo, presentes em suas queixas sobre estados depressivos e ansiosos, acompanhados de ataques sistemáticos à comida, com histórias de fracasso em diferentes formas de tratamento, acompanhadas por efeitos devastadores no seu funcionamento orgânico e pelo prejuízo em diversos níveis do laço social.
De qualquer maneira, à luz da psicanálise nenhum destes fenômenos, cujo acontecer se dá através do objeto oral, podem ser tomados como meras desordens da alimentação. Trata-se menos de disfunção e mais de colocar algo em função, são artifícios quando tentam reparar a parte intratável do gozo (Cervelatti, 2005).
Diante disso, vemos que o discurso médico, apesar de incluir diversas propostas de tratamento, até mesmo práticas cirúrgicas, não consegue imperar sozinho. A obesidade faz vacilar o discurso da ciência, o que nos faz pensá-la como um fenômeno contemporâneo.
Minha experiência clínica diante deste fenômeno faz pensar na obesidade como um paradigma do sujeito contemporâneo com seu modo de gozo, nessa relação voraz com o consumo de objetos.
Em A sociedade do sintoma, Laurent (2007) nos lembra que Lacan chamou a atenção para a “ascensão ao zênite social do objeto a” (p. 163), para esclarecer essa busca excessiva por objetos, sempre acessíveis e descartáveis (gadgets), que parece caracterizar a forma da sociedade contemporânea tratar a angústia decorrente do trauma da “não relação sexual”, ou seja, da impossibilidade de completude, da falta que permeia a constituição do ser falante.
Diferente da era Vitoriana, na qual viveu Freud, a contemporaneidade vive uma nova regulação social dos valores morais, que não se sustenta mais sobre o “culto ao dever”, como antes, aquele que ordenava a submissão do desejo à lei. Percebe-se que o declínio do ideal se acompanha das exigências de um empuxo ao gozo – a  >  I (Laurent, 2007).
Diante desse estado de civilização onde a pulsão revela ainda mais sua face mortal, podemos pensar a relação com o alimento como mais uma forma de gozo? Em consequência, é possível então que a obesidade ocupe o lugar de uma invenção particular frente a “não relação sexual”? Poderíamos pensar a obesidade como um sintoma?

 

 

O sintoma para a psicanálise

Em “O mal estar na civilização”, Freud (1930) já nos falava sobre o sintoma como uma forma de satisfação substitutiva para os desejos sexuais não realizados, uma vez que o princípio do prazer norteia o sentido da vida.
“[…] a libido repelida pela realidade a partir de uma privação insuportável leva o sujeito a uma regressão através do caminho da fantasia, buscando outras saídas para a satisfação. Esta libido insatisfeita contribuirá para a formação do sintoma, como uma forma de satisfação substitutiva para desejos sexuais não realizados” ( p.113).
Nos diz que a “sombra da infelicidade” está sempre por perto, já que a própria  constituição humana nos coloca diante de coisas que não podemos controlar:  a morte, a natureza e os próprios conflitos existente nas relações humanas.
Lacan segue os ensinamentos freudianos num primeiro momento ao tratar do sintoma como uma formação do inconsciente:
“[…] o sintoma se resolve por inteiro em uma análise da linguagem, porque ele mesmo é estruturado como uma linguagem cuja palavra deve ser liberada” (Lacan em Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise [1953] citado por Ocariz, 2003, p.114).
O sintoma é compreendido como uma formação do inconsciente que se apresenta como articulação significante, com estrutura de linguagem, uma vez que é construído pormetáfora e metonímia. Ele estaria ali para representar algo que havia sido reprimido pela consciência (recalcado), e a partir da descoberta do seu significado em análise, na formulação do desejo inconsciente em consciente, o sintoma se resolveria. O sintoma seria, portanto, uma mensagem.
Ainda neste primeiro ensino, a partir de uma perspectiva de uma relação imaginária e simbólica entre o sujeito e o Outro (aquele que sabe o que o sujeito não sabe), o sintoma constitui uma palavra que não foi reconhecida pelo Outro e que pede para ser reconhecida. Trata-se de uma perspectiva de satisfação pulsional que passa pelo desejo de reconhecimento, em que o sujeito busca ser objeto de completude do Outro. O sintoma seria, portanto, uma mensagem endereçada ao Outro.
Com o avanço de sua clínica e de suas teorizações, Lacan descobre que o campo da psicanálise não estava ocupado só pela linguagem; o real, alheio ao sentido e à significação, tem um papel central na formação dos sintomas. A partir deste último ensino, o sintoma é compreendido como aquilo que o sujeito tem de mais real, sendo o real aquele que não pode ser simbolizado na palavra ou na escrita, o que é irredutível à significação, o que volta sempre ao mesmo lugar, o que não cessa de se repetir e de não se inscrever (Ocariz, 2003).
A partir do seminário 17 – O avesso da psicanálise [1969-1970], o sintoma passa a ser considerado como uma maneira de gozar. É importante retomar a diferença entre o prazer e o gozo – enquanto o primeiro está ligado a homeostase, o gozo está relacionado ao além do prazer, ao que escapa à simbolização, à máxima satisfação da pulsão.
Sendo o gozo essa busca pela satisfação absoluta, pelo a-mais incessante, para suportar viver com o fato de que ela jamais chegará, o ser humano continua desejando e se contentando com substituições, satisfações parciais, com véus que satisfazem parcialmente o desejo e velam o insuportável e indizível do furo, da hiância, da “não relação sexual”. O desejo jamais será satisfeito plenamente porque falamos, estamos imersos num mundo simbólico, jamais chegaremos à plena satisfação.
Essa entrada na linguagem desencadeia no sujeito a condição de um ‘menos’, um menos de gozo que advém da extração que o significante opera sobre o vivente, a partir da sua imersão no campo do Outro. Esta operação instala o que poderíamos denominar de um certo mal-estar, um certo incômodo que gerará um movimento de busca incessante com a intenção de restituir o que se perdeu. Essa condição de menos causará a repetição da impossibilidade na cadeia significante, ou como chamou Lacan: isso que “não cessa de se escrever” (Mattos et al, 2000).
Quando falamos da linguagem pensamos na inserção do sujeito na cultura. Laurent nos ajuda a compreender estes efeitos a partir de alguns conceitos trabalhados em “A sociedade do sintoma” (2007):
[…] “antes da Segunda Guerra Mundial o sujeito tratou a sua angústia alimentando sonhos deletérios de restauração de um “todo”, na falta de uma civilização toda. Foi o momento do sonho de um Estado-todo e dos apelos aos líderes carismáticos dos partidos totalitários. O pós II Guerra Mundial inventou uma terapia nova, o sujeito passou a se tratar ao abrigo de novos significantes mestres que emergiram mal ou bem do caos” (pag. 165).
Diante deste furo constituinte, na dificuldade de encontrar significantes que dêem conta da falta, o sujeito se confronta com o inominável, com a dimensão do sem sentido, do fora do simbólico: o objeto a – principal conceito desenvolvido na teoria lacaniana, que se refere a um resto, a uma parte de gozo perdido diante da intrusão do significante, que será “reivindicado” sempre. Essa dimensão de gozo perdido que ex-siste, mas insiste, é o que gera o desejo e todo movimento de investimento pulsional do sujeito. Porém ele não se encontra disponível de forma materializada, trata-se de um objeto da fantasia, portanto, com a possibilidade de atribuição em “fragmentos” parciais do corpo – os objetos pulsionais (seio, fezes, olhar, voz), e imaginariamente, de forma ilimitada, nos objetos disponíveis na cultura (Chemama e Vandermersch, 2007, verbete “objeto a”, p. 278).
Na atualidade, frente ao declínio do Ideal, o sujeito se vê confrontado a possibilidade de suportar a inconsistência do Outro e sua ausência de garantias, ou ceder ao imperativo do gozo, visto que na contemporaneidade, a prevalência do chamado discurso capitalista, que supõe ter a condição de oferecer o que falta ao sujeito, intermediado pela prática do consumo, oferece objetos que tentam cumprir essa função.
“[…] o consumo passa então a ocupar o lugar de uma relação possível, o objeto de consumo não interpela nossa divisão subjetiva, pelo contrário, se apresenta como um parceiro silencioso que apagará os traços da castração” (LAURENT, 2007, pag. 174).
Na sociedade do consumo, a subjetividade se constrói ancorada nesse ideal da máxima e imediata satisfação. Essa dinâmica determina as relações sociais e afetivas. As razões de existir e o sentido da vida se fazem através de modos de gozo consumistas, onde inclusive o corpo e a vida do outro, do semelhante, tornam-se objetos utilizáveis e descartáveis.
Como diz Leonardo Gorostiza no texto A nobreza do sintoma (2006), com a ênfase nas noções de real e de gozo, podemos localizar uma reformulação da noção de sintoma a partir do último ensino de Lacan, a ponto de ele ganhar uma nova grafia (sinthoma).

“O sintoma não é verdadeiramente o real, mas ele é o que vem do real, é a manifestação do real em nosso nível de seres vivos. Somos parasitados pelo real no sintoma. Ele é o mínimo de real que insiste e não pode ser descartado” (GOROSTIZZA, 2006, pag. 5).
Na Teoria do parceiro (2000), Miller retoma o fato de que a “não-relação sexual” é o dado do real para o humano. O inconsciente interpreta esse furo do real e cifra a não relação sexual. O sintoma é o que libera essa cifração e a insere na cadeia de deslocamentos (de significantes e de objetos). Portanto, o sintoma é o que se inscreve no lugar da não relação sexual.
O sintoma, portanto, mais que uma mensagem endereçada ao Outro, que diz de uma verdade inconsciente, é uma suplência da não relação sexual, uma invenção absolutamente singular que o sujeito produz para lidar com o que se apresenta como uma falha, falha do parceiro sexual “natural”. Diante disso, o objeto a apresenta-se como seu parceiro essencial, por remeter a alguma coisa do seu gozo, seu mais-de-gozar (Miller, 2000).
Nessa nova perspectiva, vemos que a cultura disponibiliza modos de gozo oferecidos e construídos a cada tempo, mas são produções que falham, que não são suficientes ou eficazes para tamponar o furo do real.
Viera (2010) nos diz que o sintoma é justamente o que faz a articulação entre o campo da pulsão, o gozo (o real) e o campo do Outro (o simbólico), campo da linguagem, dos significantes, da produção de sentidos. Sendo assim, “não podemos nos limitar a dizer que o sintoma é um mal externo, como na medicina, e tampouco nos contentaremos com a ideia de que é uma mensagem. Diante do último ensino de Lacan, o sintoma pode ser entendido como um híbrido, feito de um ser (as significações dadas em uma história de vida ao sexual) e um não ser (o sexual); o sintoma funciona como um aparato de comunicação entre gozo e Outro (p. 2).
Essa concepção de sintoma nos situa que há no humano uma dimensão traumática constituinte e um núcleo de gozo impossível de ser reabsorvido, do qual o sintoma é testemunha. Não existe, portanto, sujeito sem sintoma, sem mal-estar. Essa nova concepção nos remete ao incurável do sintoma.
Numa análise, o que pode ser reduzido é o “gozo transparente”, o gozo ligado ao sentido, o gozo fálico. Mas há um resto, o “gozo opaco”, que resiste, que não se inscreve em nenhuma operação de sentido.
Portanto, nessa concepção de sintoma a questão é “saber fazer com o seu sintoma”. Lacan, em seu último ensino nos fala sobre “saber haver-se aí (savoir y faire) com o seu sintoma”, não no sentido de curar-se, nem de deixá-lo para trás, ao contrário, é estar enroscado e saber haver-se aí. Ele propõe um manejo diante daquilo que não muda, “o bom uso do sintoma”. Supondo que o sujeito seja capaz de dispensar um cuidado ao seu sintoma, da mesma forma como consegue cuidar de si, a partir de uma ordem imaginária (veste seu corpo, faz dieta, cuida da sua imagem). Nesse sentido, o fim da análise não é deixar de ter sintoma, como seria uma perspectiva terapêutica, mas sim, ao contrário, amar o sintoma como se ama a própria imagem, e até mesmo amá-lo em vez de sua imagem.  Ao final de uma análise, não é esperada a cura, mas a identificação a esse resto de gozo irredutível, que é a marca absolutamente singular do sujeito, ou seja, o sinthoma (Miller, 2000).
Essa perspectiva reformula o destino do sintoma na direção de uma análise. Mas abre também a perspectiva de que é possível mudança na posição do sujeito sem que seu modo essencial de gozo seja eliminado ou substituído. Na direção ética de um tratamento analítico, o que se espera é que o sujeito se responsabilize por essa forma singular que inventou para responder ao real da pulsão. E, ao se responsabilizar por seu sintoma, possa desenvolver, ao final de cada ciclo de uma análise, um saber-fazer com seu sintoma; um saber-fazer “diferente” com seu modo de gozo, que lhe permita inserção nos laços sociais e a capacidade de estabelecer e sustentar parcerias com o semelhante.

 

 

Obesidade e psicanálise

Em oposição à medicina que entende a obesidade como transtorno da alimentação, na psicanálise ela é compreendida como vicissitude do desejo e do gozo. O alimento é apenas um suporte material do verdadeiro objeto em torno do qual essa patologia se organiza – o nada. Na anorexia, o objeto é o “nada” que se come, “nada” que representa a recusa ativa em extinguir o desejo na satisfação da demanda. Na obesidade, por sua vez, tudo que se come serve para circunscrever um “nada”, “um vazio” que insiste, retornando para o sujeito sem mediação significante (Zucchi, 2002).
Recalcati (2002) nos fala sobre a intrusão do significante como “algo que não pode advir sem deixar restos”. A experiência pulsional representada pela fome remete a uma animalidade primordial que se recusa a consentir totalmente na mortificação infligida ao corpo vivo e se apresenta como um impulso ao gozo mortífero.
A exemplo disso, me recordo de escutar, com alguma frequência na clínica, a descrição de uma “fome animalesca” como um significante utilizado para justificar os ataques de comer, que só cessam diante da constatação do excesso, do “estar cheio” em oposição ao “estômago vazio”, que mais se parece com um “saco sem fundo”.
O corpo transbordante de gordura do sujeito obeso impossibilita que esse mal estar inquietante seja privado. Ele mostra uma alteração, expõe o traço obsceno e acéfalo da própria pulsão, da evidência de um submetimento à posição de objeto de gozo do Outro. Recalcati (2002) destaca esse aspecto de que na obesidade, o corpo disforme pelo excesso se impõe à percepção e sugere que a ela possa ser pensada como uma clínica do “olhar” – um gozo em fazer-se visto, fazer-se objeto do olhar do Outro.
Lembro de uma paciente, bastante jovem e muito obesa, relatando a angústia de encontrar as pessoas por conta de um corpo que sempre chegava primeiro que ela: “[…]é insuportável a sensação de que todos me notam pelo meu tamanho, pensam que sou preguiçosa, esfomeada, que não tenho força de vontade para mudar. Não enxergam o que eu sinto e o que faço, somente o problema que eu tenho. Além deles existe o espelho, mas este pelo menos posso escolher que parte suporto olhar”.
Quando comparamos a obesidade aos chamados transtornos da alimentação como anorexia e bulimia, vemos que na anorexia o corpo descarnado indica um domínio do Eu, uma forma de fazer do próprio corpo o falo e de barrar o gozo do Outro, um não a um Outro que devasta. A posição anoréxica é a experiência da recusa, estando, portando, do lado da operação de separação; enquanto na obesidade o fenômeno que impera é a impossibilidade de recusa. Assim como a bulimia, ela estaria do lado da operação de alienação, na qual o sujeito é “agido” pela pulsão, em poder do imperativo do gozo (Recalcati, 2002).
Essa questão é evidenciada pela fala de um paciente obeso a respeito da sua experiência com a alimentação: “[…] só paro quando vejo o final, independentemente da fome, antes disso é insuportável”.
Apesar de mecanismos bastante semelhantes na obesidade e na bulimia, os episódios compulsivos (binges) estão do lado da alienação, na bulimia porém, o vômito marca uma possibilidade de separação do Outro, ou seja, alienação e separação convivem, diferente da obesidade onde há somente alienação.
Outro ponto bastante importante destacado por este autor diz respeito ao diagnóstico diferencial do sujeito portador deste “corpo disforme pelo excesso”, ou seja, a sutil diferença na clínica entre uma obesidade neurótica e uma obesidade psicótica, discutido a seguir.
Na obesidade neurótica, ainda que muito grave, podemos encontrar um uso subjetivo do corpo gordo como uma modalidade de interrogação histérica do desejo do Outro. Por exemplo, uma das minhas pacientes histéricas e obesa: “a gordinha sexy”. Apesar de ter sido sempre muito magra, o sobrepeso se anunciou de forma rápida e marcante após o término de um relacionamento intenso, uma “paixão louca”, em que passou de “boa moça” a “ovelha negra”.
A experiência de “sexo, drogas e rock’n roll” constitui uma parceria intensa, e devastadora. As consequências desta escolha se evidenciam com o decorrer do tempo e o rompimento é anunciado como uma tentativa de “preservar seu futuro”.
Uma angústia significativa se apresenta como um resto dessa escolha, uma sensação de desinteresse generalizado, de um quadro depressivo, seguido de um período de excessos: “baladas, compras e sexo indiscriminado”.
Um “começar de novo” se anuncia com a retomada da vida intelectual acompanhada por uma nova tribo, “mais pensante e desprendida”. A comida ganha um lugar de maior destaque entre os objetos de prazer, além da bebida alcoólica e do saber.
O corpo toma formas diferentes e a nova fase inclui o encontro com o outro do mesmo sexo, marcado por inúmeras identificações e a sensação de “ser amada e valorizada como pessoa, independentemente do seu corpo”.
Essa escolha passa por alguns “ajustes” ao decorrer do relacionamento, como tentativa de legalizar o seu gozo: “[…] mantemos uma relação aberta, em que posso ficar eventualmente com homens”.
Diante disso, observamos que o processo de engordar representou uma tentativa de verificar o seu valor no desejo do Outro e recusar-se a reduzir seu próprio ser a um puro objeto do gozo fálico do homem, como nos diz Recalcati (2002). A paciente fala a esse respeito a partir de uma construção feita em uma análise anterior: “ficar gorda foi uma forma de me proteger dos homens que só se interessavam pelo meu corpo e não pela minha pessoa”.
O relacionamento homossexual é bastante valorizado sob essa perspectiva, mesmo havendo uma parte desse desejo que ainda se oferece aos homens “casualmente”.
Na formulação de Recalcati (2002), a devoração aparece como uma compensação de um dom de amor não recebido. O sujeito troca o signo desse dom de amor que falta pelo consumo voraz do objeto comida. Onde falta o signo, o sujeito consome o objeto. Na ilusão de que nessa consumação infinita a “falta-a-ser” do sujeito possa ser magicamente resolvida.
Pensando na obesidade psicótica, vemos que o corpo não traduz um conflito psíquico em um sintoma. É como se o corpo tivesse neutralizado o encontro traumático com o gozo separando-se, por assim dizer, do sujeito, tornando-se uma coisa, uma massa informe, um objeto destacado (p. 56) – O corpo é um Outro para o sujeito.
Diferente do corpo histérico que fala, o corpo obeso é um corpo impossibilitado de falar devido ao “demasiado cheio” de gozo que o marca.
Vemos que a fala não incide sobre o corpo assim como o sujeito não se reconhece nesse corpo, ”o sujeito não é um corpo, mas tem um corpo” – este corpo aparece como um objeto descartado que não coincide com o que se imagina ser.
“É como se o sujeito separasse o eu (representado como ideal) da imagem de seu corpo. A imagem do corpo gordo não é simplesmente uma imagem desinvestida narcisicamente, degradada pela rejeição, mas pode funcionar também como um invólucro, como fortaleza que circunda o eu “sem carne” do sujeito preservando assim seu valor abstratamente ideal” (RECALCATI, 2002, p. 57).
Diante disso, há uma grande possibilidade de se separar deste corpo e gerar uma produção fantasiosa de eu ideal onde o sujeito obeso se refugia, desencadeando uma cisão entre o eu ideal e corpo descartado, sem condições de produzir uma identificação simbólica sobre si mesmo, muitas vezes se utilizando de frases estereotipadas para se representar: “pareço um balão”, “cansei de ser ponto de referência”.
Na impossibilidade de separação da demanda invasiva do Outro, o sujeito se separa do próprio corpo identificado como corpo-dejeto.
O corpo obeso funciona como um invólucro, como uma armadura que defende o sujeito na medida em que circunscreve e separa o gozo invasivo, mas não o representa.
Diante de casos como este, tratamentos como a cirurgia bariátrica podem representar o risco de retirar do sujeito esta última defesa. Além disso, o caráter irreversível desta cirurgia pode ocasionar não só uma lesão no organismo, mas funcionar como uma lesão (talvez irreversível) da compensação imaginária que garantia ao sujeito uma identidade e uma estabilização.
Nesses casos de obesidade, ao contrário da neurose, a angústia não está relacionada à falta, mas à falta da falta, como na psicose.
Há um retorno do real da pulsão diretamente sobre o corpo, num circuito que não passa pelo recorte dos objetos no campo do Outro. O corpo torna-se ele próprio o objeto. O sujeito come, mas não sabe mais se come ou se é comido. O sujeito se torna literalmente um objeto-devorado. (p. 70)
Isso me faz lembrar de um caso de um paciente com quem tive pouco contato, apenas uma entrevista como parte de uma avaliação psicológica para realização da cirurgia bariátrica. Um jovem, com histórico de acompanhamento psiquiátrico desde a adolescência por conta de comportamentos agressivos a si próprio, aos familiares e à sua casa (através de tentativas de incêndio), além de idéias de perseguição por pessoas do convívio social.
Todos os episódios são relatados pelo próprio paciente que dizia achar importante me contar “a verdade” sobre sua condição, para que eu pudesse tratá-lo após a realização da cirurgia, entendida como uma forma de “frear” o ganho de peso, já que a comida representava um “inimigo” que não conseguia enfrentar sozinho. Dizia estar num momento de “estabilização” de seus sintomas, depois de inúmeras tentativas de terapia medicamentosa, agora havia encontrado a medicação “correta” para o seu caso (referindo-se a um psicotrópico com ação anti-psicótica).
Com relação ao excesso de peso, os episódios compulsivos eram bastante frequentes e indiscriminados, mostrava pouca tolerância a tratamentos baseados em dieta alimentar, alegando não conseguir conter a fome que era proporcional ao seu estômago “gigante”.
Apesar de seus 140 kg, realmente parecia muito pequeno diante da “fome gigante” que norteava sua relação com a comida, além de inúmeras outras dificuldades em submeter-se a esse tipo de tratamento por conta de sua condição emocional, que apesar de “estabilizada” ainda mostrava-se bastante delicada.
Iniciei uma discussão do caso com o médico cirurgião que o havia encaminhado, porém o paciente não seguiu adiante com a avaliação psicológica, apenas deu um telefone alegando que não teria condições de pagar pelas entrevistas propostas e buscaria alguém do seu plano de saúde.
Após contato com a equipe médica, recebi a informação de que ele também havia interrompido o processo de preparo cirúrgico.
Não houve tempo para dar continuidade na escuta, a fim de avaliar se tratava-se de uma psicose do ponto de vista psicanalítico. Fica uma hipótese de que o paciente poderia ter consequências ruins após a cirurgia, relacionadas a essa dúvida diagnóstica sobre a sua posição subjetiva e à função que o sintoma obesidade talvez tivesse para ele – a de uma suplência que mantinha seu enlaçamento e tinha um papel na sua “estabilização”.
Um outro caso recente e bastante marcante, me surpreendeu pela velocidade dos acontecimentos “degradantes” após a realização da cirurgia bariátrica. Uma mulher que chama atenção pela sua beleza, apesar da obesidade e que se utiliza de fotos do passado para apresentar a forma que a representa, já que se sente “deformada” após o ganho de peso excessivo.
Diante da vida humilde do interior, do abandono do pai e das dificuldades em lidar com o alcoolismo da mãe, casar-se com um homem mais velho lhe parece uma oportunidade de “ter uma vida melhor” e “construir uma família de verdade”.
Após o casamento, o corpo jovem e bonito é submetido a inúmeros tratamentos de fertilização, por conta da sua dificuldade em engravidar. A gravidez se dá em condições frágeis e exige uma condição de repouso absoluto. O ganho de peso acontece de forma gradativa, intensificado no período de repouso. Após o nascimento dos bebês (gêmeos) apresenta um episódio depressivo importante e passa a fazer uso de bebida alcoólica e a comer compulsivamente. Inicia acompanhamento psicológico e psiquiátrico, interrompe o consumo de álcool, os sintomas depressivos diminuem gradativamente, porém o peso continua fora dos seus padrões e entendido como o responsável pelo mal estar do momento.
A cirurgia bariátrica é entendida como forma de “ajudar a controlar” a questão do peso e consequentemente melhorar o seu estado geral. O risco para o alcoolismo é apontado durante o período de avaliação para a cirurgia, porém, o parecer “favorável” da psiquiatra e da psicóloga que a acompanhavam é levado em consideração e a paciente realiza a cirurgia bariátrica.
Logo no início apresenta dificuldades com a alimentação (episódios de vômito e intolerância alimentar frequentes) e após cerca de três meses volta a fazer uso de álcool, que aumenta gradativamente até o momento em que a  paciente é internada em uma clínica de reabilitação psiquiátrica pelos profissionais que já a acompanhavam antes da cirurgia (psiquiatra e psicóloga).
Sou informada sobre o andamento do caso através do médico cirurgião responsável.
De qualquer forma, trago essa experiência para pensar sobre a função da obesidade para essa paciente e na conseqüente desestabilização após a restrição do seu modo de gozo a partir da cirurgia bariátrica. Levanto a hipótese de que a relação de mais-de-gozo com a comida foi deslocada para o álcool. Ambos os sintomas funcionando como o elemento de suplência que permitia o enlaçamento dos três registros, protegendo o sujeito de um desencadeamento.

 

Obesidade, uma marca da contemporaneidade

A obesidade, tal como a bulimia e outras dependências patológicas, manifesta-se como patologias da época contemporânea.
Vivemos em uma cultura onde predomina a ausência da função paterna ou que o Nome-do-Pai está esvaziado pelas pressões do capitalismo contemporâneo. A busca pelas razões de existir se faz através dos modos de gozo consumistas propostos pela cultura ocidental moderna.
Frente a um Outro que sufoca todo apelo do sujeito através da oferta de objetos, a obesidade indica uma posição de passividade do sujeito que não está em condições de promover nenhuma forma de desmame dessa oferta ilimitada e asfixiante do Outro (Recalcati, 2002).
Retomo, portanto, a idéia de que a obesidade se oferece, então, como paradigma clínico da civilização contemporânea, em que a queda do signo favorece a busca desenfreada pelo consumo de objetos como empuxo ao preenchimento do vazio.
Recalcati (2000) nos diz que a tendência da civilização contemporânea a produzir obesidade é uma tendência generalizada que se localiza de modo particular na infância. A exposição das crianças ao risco da obesidade é encorajada pelo discurso social, a medida em que alimenta uma demanda convulsiva de objetos – como efeito de uma decadência do ideal, no que concerne à promoção do objeto de gozo. O discurso social atual sustenta a necessidade de uma saturação do vazio ou, mais exatamente, a saturação do vazio como modalidade de supressão da falta e do desejo.
Diante da oferta do objeto gadget, quese oferece ao sujeito como empuxo ao preenchimento do vazio de forma imediata, sem adiamento, nada mais justifica a renúncia. Vivemos uma metamorfose antropológica como resposta ao nosso próprio mal estar atual da civilização, em que a queda do signo e a afirmação do objeto de consumo se configuram como dois efeitos dessa transformação fundamental (Recalcati, 2000).
Esse mesmo autor nos diz que:
“a obesidade é o fenômeno psicopatológico que, talvez mais do que todos, ilustra os efeitos devastadores dessa saturação: o corpo é reduzido a um mero receptáculo de objetos. Receptáculo cuja capacidade de recolher aparece-nos como ilusoriamente infinita. O obeso, ao identificar literalmente o vazio com o vazio do estômago, comete de fato um erro topológico que revela uma verdade de estrutura: o sujeito contemporâneo é reduzido a uma máquina de gozo” (p.65).
Vemos que o Outro contemporâneo deixou cair seu poder histórico de interdição e passou a sustentar a lei perversa do gozo ao alcance das mãos para todos. Essa transformação histórico-social do Outro contemporâneo é sintetizada por Lacan como passagem do discurso do mestre para o discurso capitalista. O primeiro sustenta a interdição do gozo e faz valer uma concessão hierárquica do poder. O segundo, pelo contrário, aparece como um circuito de reciclagem no qual “tudo se consome” incessantemente e segundo uma expansão globalizante, na ilusão de que nessa consumação infinita, a “falta-a-ser” do sujeito possa ser magicamente resolvida. A oferta maníaca do objeto para consumir toma o lugar da interdição do mestre. O objeto a se encontra distorcido de seu status de objeto perdido ao ser posto à disposição no mercado, enquanto gadgets, a qual não constitui senão aspecto “faz de conta” do objeto (Recalcati, 2000).
O encontro com o Outro sexo é evitado, tal como é evitada a busca do signo de amor que abalaria inevitavelmente a certeza do gozo garantido pelo consumo do objeto ante a contingência do desejo do Outro. Vemos então, que o esquecimento contemporâneo do signo favorece o impulso indiscriminado ao consumo.
Para não se ver confrontado com o enigma do desejo do Outro e com o horror de que o Outro não tem para dar a completude, o sujeito contemporâneo se refugia na ilusão imaginária do gozo do consumo dos objetos, terminando, muitas vezes, por identificar-se ao próprio objeto, à posição de resto, de dejeto.

 

Considerações finais

Parecia-me muito desafiador aplicar a psicanálise a um “modelo de trabalho” construído inicialmente por um outro campo de saber (Medicina e Psicologia) e pelo discurso do Mestre, estruturado por breves entrevistas em que o sujeito não busca uma análise, mas na maioria das vezes, um “atestado” sobre o seu sofrimento diante daquele mal estar que poderia ser “curado” por um procedimento cirúrgico.
Deparo-me diariamente com sujeitos que apresentam uma dificuldade proporcional ao seu tamanho, em se apropriar da sua forma particular de se tornar “obeso”.
Poder escutar suas queixas e a partir disso localizar o que é do sujeito, do seu modo de gozo e de alguma maneira convocá-lo a se responsabilizar, independentemente da perspectiva de tratamento do discurso da ciência que irá escolher, me assegura o lugar daquele que para além de um reprodutor de protocolos, exerce a clínica através de um pensamento e uma escuta implicada, logo, um lugar de desejo.
Essa aposta de trabalho em que opto pela psicanálise aplicada me coloca diante de desafios importantes, como o de sustentar o discurso analítico no espaço do saber da Medicina em que impera o discurso do Mestre e poder sustentar a escuta e o dispositivo analítico diante de casos como esses, comentados acima, em que a diferenciação diagnóstica entre neurose e psicose é tão sutil e tão primordial para a condução de um tratamento.
Escrever a esse respeito foi bastante postergado, até o momento em que também me vi convocada a expor sobre o meu saber e me deparar com o meu não saber, que fez com que esse trabalho se desse, não sem angústia, mas que contribuiu para voltar à minha prática de uma forma diferente, mais autorizada a partir da psicanálise e do “desejo do analista”, independentemente do contexto.
Penso que a produção escrita que teve início aqui possa ser ampliada, de maneira que o saber da psicanálise possa contribuir para o tratamento do sujeito contemporâneo frente ao discurso da ciência, através da clareza da sua posição, distinção de meios, reconhecimento de fins, para que a força da diferença e da singularidade se faça presente de modo construtivo.

 

Referência bibliográfica

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Prevalência = número total de casos existentes numa determinada população e num determinado momento temporal.

Incidência = número de novos casos surgidos numa determinada população e num determinado intervalo de tempo.