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Atualidades Psicanalíticas #18

Solidão Organizada

Por Gustavo Dessal

Alguém se lembra dos anos dourados do isolamento, quando a humanidade acreditou ser Uma no amor universal? Muitos viram a profecia da redenção, a promessa de uma retificação histórica: renasceríamos em melhores condições. Aquele sonho não durou muito porque logo se transformou em pesadelo e os zumbis voltaram, as criaturas lúgubres que dormiam na mesma lama de onde viemos. Se o vírus já é um infortúnio que se espalha pelo planeta, cada nova onda traz consigo surtos do mal. A pandemia e as ideologias das trevas selaram uma aliança poderosa, trazendo à vida antigos símbolos e rituais que celebram o ódio e a morte. Por que a repetição demoníaca se prolifera na pandemia, mostrando-nos mais uma vez a careta do totalitarismo?

Talvez o medo cósmico arcaico que nos cerca tenha sido atiçado pela ação de um inimigo invisível que envenena corpos e nações. Hannah Arendt em “Ideologia e Terror” formulou a tese de que o fundamento do totalitarismo consiste na capacidade do pensamento ideológico de aprisionar os indivíduos em uma solidão organizada. Quando a existência se desfaz diante de um acontecimento que nos tira o pouco de sentido ao qual nos apegávamos para seguir adiante, o terror e a vulnerabilidade nos fazem voltar para o sol negro do pensamento ideológico em busca de uma resposta. Para Arendt, o totalitarismo se implanta por meio da organização calculada da solidão, destruindo os laços que ligam os sujeitos entre si e destes com a experiência individual da realidade. O totalitarismo substitui a estrutura individual da fantasia – cenário onde cada sujeito encena a sua experiência singular da realidade – por um molde onde as singularidades são esmagadas pelo peso do terror coletivo. A ideologia é o horror ainda maior do que o terror que se apodera de nós quando temos que enfrentar o abismo de nosso inconsciente. Assim, preferimos nos refugiar na solidão das massas, nos tornar autômatos selvagens, desprovidos de qualquer solidariedade humana, prontos a seguir os caminhos que nos indicam os profetas da salvação.

O pensamento ideológico introduz a ideia de que para além da experiência singular de cada sujeito existe uma outra realidade, mais real, que ninguém foi capaz de ver, uma realidade escondida da percepção mas que nos revela o discurso totalitário. “O sujeito ideal da ordem totalitária não é o nazista ou comunista convicto, mas as pessoas para quem a distinção entre fato e ficção, a diferença entre verdadeiro e falso, não existe mais”, escreve Arendt na obra citada.

As assim chamadas “redes sociais” podem se tornar o instrumento perfeito para a dessocialização, o veículo mais adequado para deslizarmos pela ladeira da ficção paranoica. Em um artigo extraordinário sobre a distinção entre solidão e isolamento, Samantha Rose Hill aponta que em um de seus diários a filósofa alemã se pergunta se há um modo de pensar que não seja tirânico e por que os seres humanos são presas tão fáceis das formulações mais horrendas. Ela conclui que os humanos preferem a escravidão à possibilidade de pensar por si próprios. Certamente a psicanálise, ao introduzir a dimensão do inconsciente, pode levar ainda mais longe essa terrível pergunta e sua possível resposta. A linguagem constitui a primeira tirania da qual não podemos escapar e é provável que o gérmen de todas as imposições subsequentes emerja dessa captura inevitável.

Ao contrário do que acreditava a magnífica Arendt, para a psicanálise, a liberdade não consiste apenas na capacidade de pensar fora da ideologia, mas na impossibilidade que tem a fala de organizar toda a experiência singular de cada sujeito. Algo consegue escapar da instância da linguagem e de seu poder doutrinal por meio daquele resto que não pode ser assimilado no Todo, refugiando-se no sintoma. É por essa razão que o sintoma é a primeira coisa que um sistema totalitário deveria eliminar. Os alemães entenderam isso perfeitamente: o Um só pode reinar sobre as cinzas dos sintomas. Não tiveram tempo de eliminá-los a todos, mas seus novos adversários distribuídos pelo mundo, e mais bem equipados para organizar a solidão, querem voltar para completar a tarefa.

 

Traduzido por José Wilson Ramos Braga Jr. 
Texto republicado com permissão do autor. Texto publicado na Lacanian Review Online em 28/11/2020 no link abaixo https://www.thelacanianreviews.com/organized-solitude/