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D’A LÍNGUA MÃE À LINGUA-MÃE

 

Foto: Alessio Lion on Unsplah

José Wilson R. Braga Júnior (CLIPP)

Outras línguas sempre despertaram em mim certo fascínio, uma mistura de curiosidade e entusiasmo em decifrar seus enigmas e capturar o sentido. Talvez essa atração tenha relação com uma lembrança feliz que me invadiu enquanto escrevia esse texto: quando criança brincava com letras em cartolina colorida espalhadas pelo chão, e que tinham sido confeccionadas de forma artesanal pela minha mãe. Ela me ensinava a construir sílabas, palavras e frases em diversas cores – inúmeras possibilidades carregadas de afetos.

Há poucos anos, algo de novo aconteceria quando do meu encontro com a língua Manoel de Barros, a mim apresentada na voz de uma mulher, Cássia Kisi, que declamava sua poesia com as palavras coloridas da minha infância:

[…] Logo pensei de escovar palavras. […] Eu queria ir atrás de clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. […] as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. […] os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos.[…]”. Escovaii

Então era isso! Escovar as palavras até os primeiros sons. Inspiração. Afetos. Corpo. Acontecimento. E vários poemas na língua desse poeta fantástico cruzaram meus caminhos, enriquecendo meu corpo cheio de oralidades e significâncias. Um deles, me remeteu ao poder da sonoridade em fazer ressoar no corpo os afetos:

Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro. Embora elas tenham o mesmo sentido. Será pelo gosto que vem de mãe? De língua mãe? Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert? Mas eu tenho. […] Penso que a palavra pássaro em mim repercute infância. E oiseau não repercute. […] a palavra pássaro carrega até hoje nela o menino que ia de tarde pra debaixo das árvores ouvir os pássaros. […] não tinha oiseaux. Só tinha pássaros. É o que me ocorre sobre língua mãe.” A língua mãeiii

Lacan dizia que “os poetas, que não sabem o que dizem, como é bem sabido, sempre dizem, no entanto, as coisas antes dos outrosiv. Então comentei com um colega psicanalista que essa poesia me fez pensar no conceito de lalangue, lalíngua em português. E ele me disse: “E de l’élangues também”. Isso não sei o que é, respondi. E fui pesquisar. Eis o produto.

Lalíngua, neologismo forjado por Lacan a partir de um lapsov, constitui um dos significantes-chave de seu último ensino. Refere-se à lalação constituída da água da linguagem (na qual a criança é mergulhada) em seu caráter fônico, isto é, ligada à voz despida de sua substância, esvaziada de seu ser e sentido, a voz livre – livre para ser outra coisa que substânciavi, aquela que permite ouvir de maneira distinta o mesmo fonema – lalíngua, tesouro dos equívocos. Nesse sentido, papel fundamental têm as mulheresvii na invenção da linguagemviii e no engendramento de lalínguaix que é transmitida ao bebê por sua mãe – ou alguém que desempenhe essa função – e por isso chamada de lalíngua materna. É a musicalidade da voz da mãe que primeiro é capturada e seus efeitos têm caráter de enigmax. “É no encontro da palavra com o corpo que alguma coisa acontece”, diz Lacanxi – os sons, não articulados ainda pela criança, a leva a uma experiência de satisfação – trata-se aqui da dimensão do gozo – no encontro sempre contingente com o Outro, o imaginário não especular, o simbólico nascente e um real ainda indistinguívelxii. Por consequência, surge a letra, como representação gráfica, que transcreve os sons de lalíngua, dá acolhimento ao gozo e permite que ali, no corpo, algo se inscreva – letra litoral entre lalíngua e a língua.

Lacan se apropria da expressão l’élangues, criada por Phillipe Solers, para caracterizar o modo joyciano de passar de uma língua a outra somente pela manipulação dos sons, e não pela via da tradução. Citada por Lacan uma única vezxiii, na primeira aula do seminário XXIII, é uma versão maníaca do uso da língua que privilegia o gozo, um impulso em falar sem se dirigir ao Outroxiv, um não-querer-dizer-nada-a-ninguém. É também, a dinâmica que habita lalíngua, o mundo da materialidade dos sons, antes que a criança possa compreender o sentido, um impulso vital na experiência primária da linguagem onde ainda não existe o Outro materno, quando lalíngua ainda não é a lalíngua maternaxv.

Marie-Hélène Brousse destaca que a literatura e a psicanálise permitem a abordagem da memória e da lembrança com a ruptura da categoria do tempo – a assonância, materialidade sonora, sem a tirania do sentido. Os estímulos sonoros – e também os táteis e visuais – deixam traços produzidos pela efração do real pulsional do corpo. Esses traços podem permanecer conectados ou não à uma nomeação: desconectados, constituem uma memória; conectados, transformam-se em marcas que os modificam dando origem às lembranças. Os traços concernem ao inconsciente real; as marcas, ao transferencial.xvi Lacan nos diz que “o inconsciente é testemunha de um saber que apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos resultantes da presença de lalíngua. Uma elucubração de saber sobre lalíngua.”xvii, diz Lacan. A poetisa Jeanne Benameur demonstra que a escrita poética é uma experiência em contato com esse saber quando diz que “cada um de nós carrega seu poema dentro de si. O poema de sua vida. E toda nossa vida existe para trazê-lo à luzxviii.

Lalíngua faz do ser que a habita portador de uma deficiência e tudo o que lhe é permitido é fazer disso uma obra. Esse seria o exemplo de Joyce: do traumatismo de lalíngua e de suas consequências, fez uma obra, enfatiza Millerxix. Chego ao final deste percurso com poemas do belíssimo Língua-Mãe, primeiro livro da poetisa gaúcha Carolina Meyer Silvestrexx:

Ela me deu a mão e eu atravessei o mundo. Mãe

Estou grávida de palavras. Logo darei a luz a um poema.

Espero que reconheças o filho: tem as tuas aspas e as minhas reticências.

Mas, por favor, não o registre em um livro qualquer.

Deixe-o livre para decidir em qual leitor ele vai viver. Língua-Mãe

ii  Barros, M. (2003), do livro “Memórias Inventadas“. In: ‘Poesia completa: Manoel de Barros’. São Paulo: Editora Leya, 2010.

iii Barros, M. (2001), do livro “O fazedor de amanhecer“. In: ‘Poesia completa: Manoel de Barros’. São Paulo: Editora Leya, 2010.

iv Lacan, J. (1954-1955). O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

v Simonney, D.(2012) Lalangue en questions ERES | « Essaim » 2012/2 n° 29 | pp 7-16. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-essaim-2012-2-page-7.htm

vi Lacan, J. (2011[1974]). A terceira”. Opção lacaniana. São Paulo, n.62.

vii La Sagna, P. (2020). La lalangue et « l’étourdit » – L’École de la Cause Freudienne | « La Cause du Désir » 2020/3 n° 106| pp 51-54. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2020-3-page-51.htm

viii Lacan, J. (1998[1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. Opção Lacaniana, n.23. São Paulo: Eolia, p. 10.

ix Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma – Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

x Quinet, A. (2012). Psicanálise e música: reflexões sobre o inconsciente equívoco. Música e Linguagem, 1(1), 1-14. Artigo disponível online no endereço: https://goo.gl/X15B84

xi Lacan, J. (1998[1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. Op. Lacaniana, n.23. São Paulo: Eolia, p. 10.

xii Dominique Simonney, Lalangue en questions ERES | « Essaim » 2012/2 n° 29 | pp 7-16. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-essaim-2012-2-page-7.htm

xiii Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma – Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

xiv Borie, N. (2020). L’élangues, énigmatique sinthome – L’École de la Cause freudienne | « La Cause du Désir » 2020/3 n° 106| pp 55-58. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2020-3-page-55.htm

xv Malem, S. (2006). L’élangue« Che vuoi ? » 2006/2 (N° 26), pp 115-130. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-che-vuoi-1-2006-2-page-115.htm

xvi Brousse, MH. (2020). Traces et marques – L’École de la Cause freudienne | « La Cause du Désir » 2020/3 n° 106| pp 81-88. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2020-3-page-81.htm

xvii Lacan, J. (1975-1976). O Seminário, livro 20: mais, ainda – Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

xviii Benameur, J. (2011) Notre nom est une île, Paris, Éditions Bruno Doucey, 2011, p. 57-58. In: L’analyste et le dire du poème, de Pascale Leray, – ERES | « L’en-je lacanien » 2015/1 n° 24 | pp 87-103. Artigo disponível online no endereço: https://www.cairn.info/revue-l-en-je-lacanien-2015-1-page-87.htm

xix Miller, J-A. (2006). Peças Avulsas. Opção lacaniana. São Paulo, n.45.

xx Silvestre, CM. (2018). Língua-mãe – Porto Alegre: IPSDP, 2018.