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LACAN E A APOSTA DE PASCAL

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

A experiência da Psicanálise confronta-se com o efeito da perda, efeito simbólico inscrito no vazio produzido entre o corpo e seu gozo, e não por acaso Lacan aborda a aposta de Pascal no Seminário XVI De um Outro ao outro, dada a relação entre o efeito da perda (objeto perdido a que Lacan chama “a”) e o lugar “Outro”, sem o qual o objeto não se produz.

A “aposta de Pascal”, do brilhante matemático e filósfo, jansenista , está no aforismo 233 dos Pensamentos, volume elaborado a partir de anotações de Blaise Pascal, que morreu antes de editá-las. A edição primeira foi produzida pelos filósofos/religiosos de Port Royal, seguindo (segundo eles) o roteiro dado por Pascal numa conversa particular. O texto, Infinito. Nada, no qual a aposta está formulada, foi encontrado no bolso do filósofo após sua morte, num pedaço de papel dobrado em quatro.

Em “A Vida de Pascal”, escrita por sua irmã, Mme Périe, há um bilhete deixado por ele:
Amo a pobreza porque Jesus Cristo a amou. Amo os bens porque me dão a possibilidade de assistir os miseráveis. Mantenho-me fiel a todos. Não faço mal a quem me faz mal … Tento ser sempre sincero, verdadeiro e fiel com todos … e, embora seja forte perante os homens, estou atento, em todas as ações, ao julgamento de Deus … abençoo todos os dias meu Redentor … que, de um homem cheio de fraquezas, miséria, concupiscência, ambição e orgulho, fez um homem isento de todos esses males pela força de sua grandeza, à qual toda glória é devida e que não tem de mim senão miséria e erro” .

Esse é o testemunho de um crente, o que torna estranha a aposta. Ou não?  Para um jansenista o problerma da Graça se colocava agudamente, sendo dispensada por Deus a critério Deste.

Fazendo uma analogia com o número (infinito que não se sabe se é par ou ímpar, pois acrescentado a unidade, ele não irá se alterar), Pascal conclui que a existência de Deus pode ser conhecida pela fé, mas não sua natureza; o homem é incapaz de conhecer o que Deus é, e até mesmo se ele existe.  “Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, pois não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco” .
Por não compreender Deus, Pascal propõe o dilema (aforismo 233 dos Pensamentos) conhecido como “aposta de Pascal”, de formato semelhante ao dilema teorizado por Sócrates no momento de sua morte : a morte só pode ser uma entre duas coisas – ou o fim de tudo, ou o começo de uma nova vida, o que é indecidível enquanto se vive. No entanto, é possível, usando recursos retóricos, fazer a balança pender mais para um lado. Sócrates argumenta que, caso nada exista depois, será o fim de seus cansaços, pois já está velho, o que também vale para os que vivem sem se preocupar com o que virá depois da morte; se, ao contrário, existir vida após a morte, ela necessariamente será diferente para aqueles que viveram corretamente e neste caso, Sócrates estará ao lado dos melhores. De qualquer modo, a morte será para ele um bem e não um mal. Nada que a razão possa decidir, mas é possível introduzir algo que faça a diferença: o modo de viver. A propósito desse dilema, Nietzsche afirma que Sócrates odiava a vida e, ao que parece, Pascal também.

Pascal dá um passo a mais e acrescenta a aposta ao dilema. Há quem sustente que a aposta de Pascal seja uma falácia lógica , e os defensores dessa abordagem defendem que, na aposta, se é forçado a aceitar a existência de Deus, sob pena de ir para o inferno. Note-se que no aforismo 233 não há referência ao inferno, embora apareça em outras ocasiões nos textos de Pascal.

Lacan observa um efeito de fascinação exercido pela aposta e afirma que as confusões podem ser dirimidas ao se perceber que nesta se trata do Nome do Pai, e este assume em Pascal a forma de Cruz ou Coroa . A escolha se refere à existência ou inexistência do Outro, ao que sua existência promete e sua inexistência permite: a aposta coloca algo que se refere ao real absoluto – trata-se do que não se pode saber nem se é e nem o que é. Infinito versus Finito, pois “sabemos que há um Infinito. E ignoramos sua natureza. … Mas não sabemos o que ele é… Pode-se pois, reconhecer que há um Deus sem saber o que ele é” .

Se entre o homem e Deus “há um caos Infinito que nos separa” , sem poder recorrer à razão para resolver a questão “Deus existe ou não existe” (razão que é a possibilidade humana), resta a aposta, afinal os humanos nada sabem (há nos escritos de Pascal uma desvalorização constante da racionalidade) e o finito não tem qualquer relação com o Infinito.

A probabilidade de ganho e perda (50% – 50%) é a mesma, e sendo a mesma tanto de um lado como de outro, a certeza do que se arrisca é igual à incerteza do ganho. Vejamos as diferentes probabilidades:

  • Deus existe (eu creio nele) – a) aposto em sua existência; b) aposto em sua não-existência.
  • Deus não existe (não creio nele) – b) aposto em sua existência, mesmo não acreditando; b) aposto em sua não-existência.

Às duas possibilidades iniciais e a cada uma, abrem-se outras duas. O imprevisto, diz Lacan, aparece no caso do que aposta contra, sabendo que Ele existe e o que aposta a favor como se Ele existisse, mesmo acreditando que não existe.

O que se aposta é finito (todos os seus bens) com a possibilidade de ganhar o infinito; perde-se de cara o finito pela possibilidade do infinito. Para Pascal isso exclui escolha entre cruz ou coroa, pois se o infinito está em jogo, é preciso dar tudo. Com duas possibilidades V ou F, o ganho será infinito e a perda nada, nada que é algo.

Os humanos finitos e extensos conhecem a existência e a natureza do finito e também a existência do infinito, mas ignoram sua natureza. É um raciocínio semelhante ao empregado por Descartes na 2ª das Meditações, ao tentar provar a existência de Deus, ressaltando-se que em Descartes não há aposta, e sim garantia até por que este necessita da garantia de Deus para tornar consistente sua teoria.

Se o “finito se aniquila na presença do infinito e torna-se um puro nada” , o que seria este nada? O nada é o algo que pode ser posto na balança no momento da aposta, estando no campo do Outro a promessa de uma infinidade de vidas infinitamente felizes.

Quem é o parceiro de Pascal? Deus não participa da aposta, o Outro não aposta, e deste paradoxo resulta que o valor apostado se confunde com a existência do parceiro, e na aposta está, não o homem, mas o sujeito definido pela aposta, que é nada.

Pascal se dirige a um Outro sem rosto e não é preciso que ele tenha algum. Ele joga sozinho sobre a existência do Outro, Infinito, pois sendo finito é só o que ele pode fazer e mais, o jogo deve ser jogado por cada qual em solidão.

A pergunta que fica é porque jogar? “Não é coisa que dependa da Vontade, já estamos metidos nisso” . Ocorre que, o que está comprometido é o Eu (Je), o estar vivo convoca ao jogo. O sujeito pensante percebe que só pode se reconhecer como efeito de linguagem, embora para pensar ele primeiro exista, mesmo que Descartes não o queira. Ao colocar-se no jogo, o sujeito, antes de ser pensante é a, só a posteriori coloca-se a questão de que pensa por estar no jogo: ele não precisou pensar para ser fixado como a,isso ocorreu antes do pensar.

A escolha pode implicar em erro e será que “o certo é não apostar” ? Mas não há escolha aqui, o desejo do homem é o desejo do Outro, e sendo a escolha forçada, resta examinar o que menos interessa ao apostador, que está longe de ser livre.

Pascal afirma que, mesmo sem fé, ele deve se esforçar, apostando todos os bens, pois o que há a perder, a não ser o nada, o finito? Fazendo como se tivesse fé, diminuiriam as paixões, os grandes obstáculos: o indivíduo será fiel, honesto, humilde, bom, amigo sincero, verdadeiro, e assim já ganha nesta vida.  Eis o que se arrisca ao apostar no infinito, pelo qual nada se deu, a não ser o nada, que não é zero, pois aí não haveria aposta e nem jogo. Lacan afirma que é disso que se trata quando a questão é o mais de gozar.

A “aposta de Pascal” é o jogo do sujeito em sua constituição. É a escolha do neurótico, apostar no Outro para garantir que existe o outro. O objeto a é uma extração do O, ir do Outro ao outro é fazer parte deste Outro que, afinal, não existe, mas mesmo não existindo, garante a existência do outro. Mas como o Outro que não existe garante a existência do outro que só existe por que o Outro existe?

Seria assim se não estivesse em jogo o Real, o Real do corpo que, antes de pensar, já está aí. Afinal, Lacan não é Jean Baudrillard que, segundo os diretores de Matrix foi o inspirador do filme. Ele recusou peremptoriamente o título, dizendo que eles não entenderam nada, o que é compreensível para quem assistiu, em especial, o primeiro filme da série. Logo nas cenas iniciais aparece, escondido no livro Simulacros e Simulação, um programa pirata feito por Neo. Veja-se p. ex. o que diz Baudrillard: “A simulação já não é simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real … precessão dos simulacros , ou ainda “… as imagens… dissimulam que não há nada por detrás delas” .

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Trabalho apresentado na “Jornada de Cartéis” da EBP-SP, 10-4-2010.

As proposições centrais do jansenismo foram declaradas heréticas por Inocêncio X, em 1653. O holandês Cornélio Jansênio (1585-1638,- escreveu Augustinus, livro muito criticado e pouco lido) iniciando um movimento que abalou a Igreja católica nos séculos XVII e XVIII. Propondo o retorno à disciplina e à moral religiosa dos primórdios do cristianismo, os jansenistas dedicaram-se ao problema da graça, livre-arbítrio e pecado original, baseando-se em Santo Agostinho (354-430).  Jansênio ensinou que a graça é imerecida e concedida por Deus através da predestinação, idéias não diferentes das de Calvino, o que torna compreensível a proscrição da Igreja Católica.

Mme. Périer, A vida de Pascal, p. 33. São Paulo: Abril Cultural, edição Os Pensadores, 1973.

Pascal, Blaise, Pensamentos p. 99. São Paulo: Abril Cultural, edição Os Pensadores, 1973.

Ver Platão, A defesa de Sócrates. Volume Sócrates da coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Argumentum ad baculum (do latim, argumento do porrete), apelo à força, falácia que usa a coerção para justificar a conclusão.

A forma como se dizia na época “cara ou coroa”.

Pascal, Blaise, Pensamentos p. 98. São Paulo: Abril Cultural, edição Os Pensadores, 1973.

Idem, Ibidem, p.99.

Idem, Ibidem, p. 98.

Idem, Ibidem, p. 99.

Idem, Ibidem, p. 99.

Baudrillard, Jean, Simulacros e Simulação, p. 8. Lisboa, Relógio d´Àgua, 1991.

Idem, Ibidem, p.12.